terça-feira, 7 de julho de 2015

Grécia (II): as cinzas de Merkel


Não serei o primeiro a dizer que o "não" grego foi uma pesada derrota pessoal de Merkel. Alguns falam mesmo da maior derrota da sua carreira - o que provavelmente é verdade. Prova disso poderá ser a capa do ultimo número da Der Spiegel. A saída da Grécia e um eventual colapso a prazo do euro atirará provavelmente Merkel para o caixote do lixo da História e poderá ser  do fim político de uma lider "acidental", ao fim e ao cabo.
Vale a pena ler a peça do Der Spiegel: aqui, na versão em inglês, "As cinzas de Merkel. Como Merkel perdeu a Grécia e a Europa".
O título fala por si e diz muito da apreensão subliminar que porventura começa a minar as elites alemãs: as dúvidas sobre a clarividência política de Merckel e a sua liderança (ou não liderança). 
  • The Greek crisis required leadership and a plan, but Merkel was unwilling to provide either. Although she likes power, when push comes to shove, she doesn't know what to do with it. And now she faces the wreckage of her European policy. How could things have come to this?
  • So she hid behind the troika, behind the hated technocrats, thereby accelerating the rise of Syriza. Indeed, Tsipras is, to a certain extent, a product of Merkel's vacillating leadership style
  • Merkel wants a Europe of nation-states and not a deeply integrated Europe. She was concerned about Juncker running as the lead conservative candidate in 2014 European elections, worried -- correctly -- that it could result in a reduction of power for European heads of state and government. Furthermore, she doesn't trust the European Parliament because majorities aren't as dependable as they are in the Bundestag back home in Berlin.
  • The chancellor says none of this openly because it would contradict the CDU's founding principle. She can speak like Kohl, but she breaks with what he stood for. Left behind is a confused EU that doesn't know what the most powerful woman on the Continent actually wants.

A parte do artigo sobre o papel da McKinsey e da "matemática" (contabilidade, as folhas de excel) na emergência das politicas de austeridade e sua adoção pelos neo liberais é notavel e mesmo de antologia:
  • In a sense, the International Monetary Fund is the McKinsey of global politics 
Mostra como a tecnocracia assumiu a política e o vazio da política europeia e dos seus líderes (incluindo o patético Barroso), e como o pensamento único da tecnocracia tem destruido o sentido político e social da Europa.
Um texto notável de jornalismo e análise política. Escrito e publicado pelo mais influente meio de comunicalão alemão, note-se. 
Interessante as opiniões atribuidas ao ministro alemão das finanças ... 

Grécia (I): a incomensurabilidade



1. Gráfico muito elucidativo publicado pelo Royal Bank of Scotland: apesar de tudo os gregos reduziram substancialmente a despesa pública, muito mais do que os outros países - e com isso precipitaram uma colossal recessão interna, resultado da receita de austeridade da UE e IMF. Vale a pena recordar aqui o gráfico incluido em post anterior (aqui), do pib per capita ppp (preços constantes).

2. O grande "Não" dos gregos deixou muita gente apoplética, e não só os políticos europeus. Na SIC Notícias, o comentador de serviço, José Gomes Ferreira, não conseguia disfarçar uma incomodidade colossal. Em filosofia, chama-se a isso incomensurabilidade: claro que para ele é inconcebível o que os gregos fizeram - são uns burros inconscientes que não percebem nada de economia, pura e dura. Wittgenstein diria que são dois "language games" completamente diferentes. Incomensuraveis. 

3. Simon Wren-Lewis, professor de economia na Universidade de Oxford, mantem um dos blogs (mainly macro) mais influentes sobre macroeconomia, com enfase na europa. Cito de um dos post mais recentes, sobre os ideólogos da eurozona:
  • One of the charges frequently made against opponents of austerity in the Eurozone is that we are really seeking the failure of the whole Euro project. The opposite is nearer the truth. The problem for the Euro project is that it has become captured by an economic ideology, and austerity is that ideology’s principle weapon. A self-confident and mature Eurozone would be able to tolerate diversity, rather than trying to crush any dissent. A Eurozone captured by an ideology will insist there is but one path, and that the imperative of austerity is too important to accommodate democratic wishes. Pursuing that ideology has brought the Eurozone to the brink, where it is prepared to force out one of its uncooperative members. Critics of austerity are not trying to destroy to Eurozone, but save it from the grip of this self-destructive ideology.

Um dos pensamentos mais perturbadores sobre a crise na UE é precisamente a transformação da política em ideologia, com o argumento da inevitabilidade da solução da tecnocracia, com base na sua qualidade "científica" e técnica.
Parece estarmos a voltar onde já estivemos, e com resultados dramáticos. O comunismo argumentava que era uma "teoria científica" que promovia a tecnologia por "métodos científicos" e que organizava a sociedade de acordo com os mesmos métodos. O nazismo praticava a segregação racial e a eugenia seletiva com base em argumentos do mesmo tipo, e tentava mesmo proclamar a sua vocação imperial numa base (pseudo) cultural e filosófica. (Heidegger caíu estrondosamente nessas esparrela, que alimentou). Por isso ver renascer este tipo de pensamento, ainda por cima centrado em terras germanicas (mas não só) é muito perturbador.

4. Ontem apareceu uma entrevista muito interessante do francês Thomas Picketty (aqui), ilustrada com uma fotografia de 1954, precisamente com o ministro das finanças grego a assinar o perdão de METADE da divida alemã (foto reproduzida abaixo). Mas a tese de Picketty é ainda mais interessante:

  • Germany is the country that has never repaid its debts. It has no standing to lecture other nations.


sexta-feira, 26 de junho de 2015

Grécia e Portugal: o amuo e as queix(inh)as do PM

No Financial Times (aqui):
  • Mr Tsipras reiterated his belief that the creditors’ plan would stifle growth and ignores the democratic mandate he received in January’s elections. ...
  • But Mr Tsipras received little support in the room, officials said. Particularly tough were the prime ministers of other countries who have gone through their own bailout programmes: Ireland, Portugal and Spain. ...
  • Pedro Passos Coelho, the Portuguese prime minister, was particularly pointed, officials said, noting that his country’s bailout programme was never debated at an EU summit and chastising Mr Tsipras for repeatedly insisting it be discussed among heads of state. “It cannot be done in a way different from every other country,” Mr Passos Coelho said.

A atitude de Passos Coelho é reveladora, mas é também um elogio e um cumprimento público à ousadia política dos gregos: o homem está amuado e preocupado porque os gregos conseguiram levar a questão a uma cimeira politica da UE, coisa que Portugal nunca ousou ou conseguiu. Este amuo mostra muita coisa. Aliás complementado pelas queixas (por exemplo, aqui no DN) que fez sobre a flexibilidade adicional que a Grecia já conseguiu da UE: implicitamente está a reconhecer que podia ter conseguido melhores condições para Portugal e não o fez, ou porque não quiz ou porque não foi capaz. 
Claro que ele conhece perfeitamente o carater recessivo e destruidor das medidas de austeridade propostas, especialmente numa situação como a grega. Mas prefere tentar safar a sua própria pele politica: como é que os gregos se atrevem a protestar e a dizer não?
Seja qual for o desfecho desta crise, uma coisa é certa: a Europa mudou. Provavelmente para pior. Infelizmente - e certamente sem necessidade. 
Recorde-se a realidade dos últimos anos. O gráfico seguinte mostra a evolução do PIB per capita at PPP (purchasing power parity, ou seja, a preços constantes). O gráfico foi recentemente publicado num artigo de Martin Wolf no FT (aqui). Este gráfico conta a história toda, nua e fria: nós perdemos cerca de 10% e a recuperação do ultimo ano nada altera de essencial. E veja-se o tombo colossal da Grécia: mais de 25%!!


Um grito de revolta: Jurgen Habermas, a Europa e a Grécia


Jurgen Habermas é um dos filósofos europeus contemporâneos mais importante. Professor na Universidade de Frankfurt, tem refletido com profundidade sobre o significado do projeto da União Europeia, que tem defendido. Por isso o seu artigo de opinião publicado no diário francês Le Monde é tão importante - por ser escrito por uma das mentes mais esclarecidas do pensamento europeu, um defensor e teorizador da transnacionalização da democracia e da constitucionalização da lei internacional, e um democrata alemão.
Este seu grito de revolta sobre o escandalo da política europeia com a Grécia faz eco do que pensam muitos europeus das gerações fundadoras da Europa. Nos comentários que tenho visto e ouvido nos programas de comentário televisivo, é patente o desalento de gente como Pacheco Pereira, Ferreira Leite ou Bagão Felix perante o descalabro das elites e líderes políticos da União. Eu partilho desse desalento e dessa revolta.
Tomei por isso a liberdade de traduzir o texto de Hebermas para português, a partir da versão francesa.
Num momento em que me sinto inquieto pelo futuro da Europa e do projeto social e solidário que representava e em que acreditei.



A escandalosa política grega da Europa
Jurgen Habermas


Traduzido do alemão para francês por Olivier Mannoni
Traduzido do francês para português por Eduardo Beira
Publicado em Le Monde, 24 junho 2015 (aqui), disponível na integra aqui

Os resultados das eleições na Grécia exprimem a escolha de uma nação cuja grande maioria se colocou numa posição defensiva face a uma miséria social tão humilhante como avassaladora, provocada por uma política de austeridade imposta ao país pelo exterior. O voto propriamente dito não permite qualquer discussão: a população rejeita a continuação de uma política de que sofreu o falhanço brutal na sua própria carne. Seguro desta legitimação democrática, o governo grego tenta provocar uma mudança de política na eurozona. Ao fazê-lo, colidiu com os representantes de dezoito outros governos, que justificam a sua recusa referindo-se friamente ao seu próprio mandato democrático.
Recordamo-nos desses primeiros encontros em que os noviços arrogantes, levados pela exaltação do seu triunfo, entregavam-se a um torneio ridículo com as gentes bem instaladas, que reagiam tanto com as mimicas paternalistas de bom tom como com uma espécie de desdém repetitivo: cada uma das duas partes tratava de gozar a legitimidade dada pelo seu “povo” respetivo, e repetiam essa antífona como papagaios.
Foi ao descobrir até que ponto a reflexão que faziam na altura, e que se baseava no quadro do Estado nação, era de um cómico involuntário, que toda a opinião pública europeia  compreendeu aquilo que realmente faltava: uma perspetiva que permitisse a formação de uma vontade política comum dos cidadãos, que fosse capaz de pôr, no centro da Europa, objetivos políticos que tivessem consequências reais. Mas o véu que encobria este déficit institucional não está ainda realmente rasgado.


Um novo recomeço
A eleição grega introduziu grãos de areia nos mecanismos de Bruxelas: neste caso foram os próprios cidadãos que decidiram da necessidade urgente de propor uma política europeia alternativa. É verdade que noutros lugares são os representantes dos governos que tomam este tipo de decisões entre si, segundo os métodos tecnocráticos, e evitam incomodar as suas próprias opiniões públicas nacionais com assuntos que as possam inquietar.
Se as negociações iniciadas em Bruxelas com vista a um acordo não tiverem sucesso, é sem dúvida acima de tudo porque as duas partes não atribuem a esterilidade dos debates ao vício de construção nos procedimentos e nas instituições, mas sim ao mau comportamento dos outros parceiros. É verdade que a questão de fundo é a obstinação com que se agarram e uma política de austeridade que não só merece a crítica generalizada dos meios científicos internacionais como teve consequências bárbaras na Grécia, onde se mostrou um fracasso manifesto.
No conflito de base está o facto de uma parte pretender provocar uma mudança desta política enquanto que a outra recusa obstinadamente envolver-se em qualquer espécie de negociação politica, o que revela uma assimetria profunda.
É preciso compreender bem aquilo que esta recusa tem de chocante, e mesmo de escandaloso. O compromisso falha, mas não por causa de alguns milhares de milhões de euros a mais ou a menos, nem mesmo por causa desta ou daquela cláusula do caderno de encargos, mas unicamente por causa de uma reivindicação: os gregos pretendem que se permita que a sua economia e a sua população explorada por élites corruptas possa recomeçar de novo com uma redução do seu passivo - ou com uma medida equivalente, por exemplo com uma moratória sobre a dívida, cuja duração dependeria do crescimento. Em vez disso, os credores continuam a reclamar o reconhecimento de dívidas que a economia grega jamais permitirá pagar.


A reivindicação duma redução da divida não é suficiente
Note-se bem ninguém contesta que uma redução parcial da dívida é inevitável, a curto ou longo prazo. Os credores continuam, com total conhecimento de causa, a reclamar o reconhecimento formal de um passivo cujo peso é impossível de aguentar. Ainda há pouco tempo, persistiam mesmo em defender a reivindicação literalmente fantasmagórica de um excedente primário de mais de 4%. É verdade que baixou depois para o limite de 1%, que continua irrealista; mas até aqui é impossível encontrar um acordo - de que depende o destino da União europeia - porque os credores exigem que se mantenha uma ficção.
É claro que os “países credores” têm razões políticas para se agarrarem a esta ficção que permite adiar, a curto prazo, uma decisão desagradável. Temem, por exemplo, um efeito de dominó noutros “países devedores”; e Angela Merkel não está segura da sua própria maioria no Bundestag. Mas quando se dirige uma politica errada, é-se forçado a fazer a sua revisão, de uma maneira ou outra, quando damos conta que ela é contra prudecente.  
Por outro lado não se pode continuar a culpar apenas um das duas partes pelo insucesso. Não sei dizer se a tática do governo grego se baseia sobre uma estratégia bem refletida nem julgar o que resulta, na sua atitude, de condicionantes políticas, ou da inexperiência ou incompetência do pessoal responsável pelos dossiers. Não tenho informação suficiente sobre as práticas usuais ou as estruturas sociais que se opõem às reformas possíveis.
Em qualquer caso, o que é manifesto é que os gregos não construíram um Estado que funcione. Mas tais circunstâncias difíceis não podem explicar porque é que o governo grego complica singularmente o trabalho daqueles que tentam, mesmo entre os seus simpatizantes, discernir uma linha no seu comportamento errático. Não se vê nenhuma tentativa racional para formar coligações; interrogamo-nos se os nacionalistas de esquerda não se agarram, apesar de tudo, a uma representação algo etnocêntrica de solidariedade, se apenas querem continuar na zona euro por motivos resultantes de simples esperteza - ou se a sua perspetiva ultrapassa mesmo o quadro do Estado nação.
A revindicação de um perdão parcial das dívidas, que constitui a base contínua das suas negociações, em qualquer caso não é suficiente para que a outra parte tenha pelo menos confiança no facto do novo governo grego não ser como os precedentes, mas que irá agir com mais energia e de maneira mais responsável que os governos clientelistas que substituiu.


Mistura tóxica
Alexis Tsipras e o seu partido Syriza podiam ter desenvolvido um programa de reformas governamentais de esquerda e “ridicularisar” assim os seus parceiros de negociação em Bruxelas e Berlim. Amartya Sen comparou a política de austeridade imposta pelo governo alemão a um medicamento contendo uma mistura tóxica de antibióticos e de remédio para os ratos. O governo de esquerda teve perfeitamente a possibilidade de iniciar uma decomposição keynesiana da mistura de Merckel, no sentido em que isso era entendido pelo prémio Nobel da economia, e de rejeitar sistematicamente todas as exigências neoliberais; mas ao mesmo tempo precisava de tornar credível a intenção de se lançar numa melhor repartição dos encargos, de combater a corrupção e a fraude fiscal, etc.   
Em vez disso, acantonou-se no seu papel de moralizador - um jogo de culpas. Tendo em conta as circunstâncias, isso permitiu ao governo alemão afastar, com um simples gesto de enfado, e com a força da Nova Alemanha, a queixa justificada da Grécia sobre o comportamento astucioso, mas indigno, adotado pelo governo Kohl no princípio dos anos 90.
O fraco desempenho do governo grego não altera o escândalo: os homens políticos de Bruxelas e Berlim recusam-se a endossar o seu papel de políticos quando se encontram com os seus colegas atenienses. Mantêm as aparências, mas quando falam, falam exclusivamente no seu papel económico, no seu papel de credores. Faz sentido que se transformem assim em zombies: trata-se de dar a aparência de um processo político a um procedimento tardio de declaração de insolvabilidade de um Estado, susceptível de ser objeto de de um procedimento de direito privado nos tribunais. Porque tendo feito isso, será mais fácil negar uma responsabilidade politica. A imprensa diverte-se com o facto de se ter dado outro nome à “troika” - e, na realidade, trata-se de uma espécie de golpe de magia.
Mas o que isso exprime é o desejo legítimo de ver, apesar de tudo, surgir a face dos homens políticos por trás das máscaras dos financeiros. Porque este é o único papel em que podem vir a ter que prestar contas por um desastre que se traduz por uma grande numero de vidas estragadas, miséria social e desespero.


Intransigência
Para conduzir as suas duvidosas operações de socorro, Angela Merkel fez entrar o FMI no barco. Este organismo é competente para as disfunções do sistema financeiro internacional; enquanto terapeuta, assegura a estabilidade e atua no interesse geral dos investidores, particularmente dos investidores institucionais. Enquanto membro da “troika”, as instituições europeias fizeram causa comum com esse ator, embora os políticos, na função desse título, se desdobrem no papel de agentes a operar no respeito estrito pelas regras e a quem não é possível pedir contas.
Esta dissolução da política na conformidade com o mercado talvez se possa explicar pela insolência com que os representantes do governo alemão, que são, sem excepção, pessoas de alta moralidade, negam a sua corresponsabilidade política nas consequências sociais devastadoras que aceitaram enquanto lideres de opinião no seio do conselho europeu, quando impuseram o programa das economias neoliberais.
O escândalo no escândalo é a intransigência com que o governo alemão assume o seu papel de líder. A Alemanha deve a impulsão que lhe permitiu a ascensão económica, de que vive ainda hoje em dia, à generosidade das nações credoras que, aquando do acordo de Londres, em 1954, riscaram com um traço da caneta cerca de metade das suas dívidas.
Dito isto, o essencial não é o embaraço moral, mas o núcleo político: as elites políticas da Europa não têm mais o direito de se esconderam por trás dos seus eleitores e de se esquivarem às alternativas perante as quais somos postos por uma comunidade monetária politicamente inacabada. São os cidadãos, não os banqueiros, que devem ter a última palavra sobre as questões relativas ao destino europeu.
O adormecimento pós democrático da opinião pública também se deve ao facto da imprensa ter caído num jornalismo de enquadramento que avança de mão dada com a classe política e que desconfia do bem estar dos seus clientes.