sábado, 19 de julho de 2014

Ainda mais sobre o BES




1. Em meados dos anos 90 conheci de perto o caso de um administrador de uma empresa importante cotada no mercado de capital. Num daqueles almoços de cativação de clientes empresariais relevantes, um quadro de topo do BES conseguiu convencer também esse administrador a fazer uma aplicação pessoal, da ordem de meio milhão de euros, num serviço de gestão discricionária.
Recordo ainda a cara de horror desse administrador quando passados uns tempos descobriu que tinha perdido cerca de 20% do capital investido e que lhe tinham aplicado o seu dinheiro em produtos financeiros ... do próprio GES / BES. Não é por acaso que me tenho lembrado deste caso nas ultimas semanas.

2. Há menos de três meses, o BES publicou e distribuiu o numero 37 do valorBES, a newsletter dos acionistas do BES, relativo ao mês de Maio de 2014, onde se faz uma análise ao exercício de 2013. O editorial é assinado por Ricardo Salgado, acompanhado da sua fotografia e assinatura. O tom laudatório do texto segue a retórica habitual desta literatura, mas algumas passagens soam hoje a uma profunda hipocrisia, escassas dezenas de dias depois de terem sido escritas. Por exemplo:

  • A boa performance do Banco num índice de referencia mundial como é o Dow Jones Sustainability Index comprova que a estratégia de sustentabilidade é um elemento fundamental do modelo de negócio e da missão do Banco, refletindo uma gestão equilibrada e pautada por valores de solidez, rigor e transparência (itálicos da minha responsabilidade).

Noutra passagem fala da "rigorosa disciplina financeira que caracteriza o banco", da "gestão prudente do risco" e reclama com orguho que "em 2013, o BES integrou a lista das 100 empresas mais sustentáveis do mundo".
Se nos recordarmos que os problemas do BES têm origem no GES, cuja administração era largamente liderada pelas mesmas pessoas da família, e que as contas do GES terão vindo a ser friamente falsificadas durante anos (porventura de forma sofisticada e durante mais anos do que se diz), podemos perguntar agora o que é que pode também estar escondido nas contas de várias empresas emblemáticas do universo do GES (inclusivé companhias do sistema financeiro, como companhias de seguros relevantes em Portugal).
O BES colocava aos seus balcões dívida (papel comercial) do GES, cuja administração (só esses???) conheciam perfeitamente o risco associado a esses produtos devido ás contas manipuladas e aldabradas do universo GES, também por eles administrado. Aliás é de perguntar o que é que realmente sabiam sobre isso os quadros de topo do BES e do GES, inclusivé os que em simultaneo têm feito carreira política - por exemplo, o que sabia sobre isso Miguel Frasquilho, deputado, economista de serviço no PSD e lider da AICEP nomeado por este governo? Mas haverá outros ...

3. Sandro Mendonça (do ISCTE) escreveu no Expresso online um texto notável e corajoso, que se recomenda (aqui). No programa Expresso da Meia Noite (na SIC Noticias), Sandro Mendonça teve a coragem de dizer o que poucos têm tido coragem para dizer em público: que Vitor Bento, CEO do BES, continua com vínculo ao Banco de Portugal, o que coloca questões sobre as relações entre regulado e regulador. Parece óbvio que Vitor Bento simplesmente não quer correr o risco de perder esse vinculo, não vá o diabo tece-las. (Mendonça recordou que Vitor Bento recebeu durante anos prémios de desempenho no Banco de Portugal quando nem sequer estava ao serviço do Banco). Questões de ética ...

4. Entretanto o WSJ publicou ontem um artigo (aqui) que complementa bem o texto referido de Sandro Mendonça, e que faz perguntas pertinentes:
  • Troubles at Espírito Santo International SA have rocked markets in southern Europe in recent days, but there were signs as early as 2012 that the Portuguese conglomerate was struggling, raising questions about why regulators didn't intervene earlier.
  • The report included an opinion from auditor KPMG, dated September 2012, which warned that as of June 2012, the €666 million ($900 million) fund had invested about 87% of its value in commercial paper of Espírito Santo entities. The fund was marketed to clients of Banco Espírito Santo. The auditor also warned that given the debt was short term and there wasn't a market price available for it, the value of the investment was calculated based on the issuer's judgment. KPMG issued the same opinion in a report for the year ended December 2012.
  • The Wall Street Journal questioned Bank of Portugal in November on whether clients of Banco Espírito Santo who invested in the fund, called ES Liquidez, were exposed to too much risk, and whether there was a conflict of interest in having a bank market a fund so exposed to debt of the bank's main holding company. A spokesman for the central bank said then the issues weren't "of responsibility of Bank of Portugal," adding the questions should be posed to the market's regulator. He, however, said the central bank was monitoring connections between banks and affiliates closely, and there were rules in place imposing restrictions on loans from banks to those affiliates.
  • The International Monetary Fund, the European Union and the European Central Bank, lenders under Portugal's €78 billion, three-year bailout program that ended in May, also didn't raise any flags about possible problems with Espírito Santo International or the bank.

quarta-feira, 16 de julho de 2014

Ainda o BES

1. Que há um buraco nas contas do GES é um facto - recordo o post anterior (aqui). O que ainda não está claro é como é que foi criado, nem qual o seu valor. Mas sabe-se que é um buraco enorme. Um amigo meu sugere que é o resultado de anos a fio de sofisticadas contabilidades criativas para esconder grandes perdas durante muito tempo - muitos anos, e não apenas os últimos anos.

2. Esse meu amigo tem ainda uma teoria, um modelo tentativo para explicar a estranha crise no GES e no BES. O BES angariava fundos de várias origens. Emprestava dinheiro ao BESA em Angola, que estranhamente perdeu o rasto a empréstimos no valor milhares de milhões de euros, algo absolutamente insólito, mesmo que cobertos por garantias do governo angolano. O meu amigo sugere que esses fundos podem ter ido parar ... aos mesmos Espirito Santo ou GES, deixando chorudas comissões pelo caminho, com o objetivo de ajudar a tapar os buracos no Luxemburgo e em Portugal. E o meu amigo recorda a história dos dinheiros que Ricardo Salgado se "esqueceu" de declarar ao fisco, que agora se dizem terem vindo Angola numa teia de comissões e empreiteiros. Mas quero acreditar que esse meu amigo é um exagerado com imaginação a mais.


3. Ontem a nova equipe de gestão entrou ao serviço. Resposta do mercado: desvalorização das acções do BES em mais de 7%. Hoje a nova administração falou (e pouco ou nada disse: paleio vago e óbvio de recuperar a confiança perdida e de "pôr fim à especulação", em vez de clarificar). Resposta do mercado: uma quebra adicional de 15%. Em dois dias da nova gestão, que era dita precisar de entrar urgentemente ao serviço para salvar o BES, o mercado respondeu com mais de 20% de perdas na capitalização bolsista do BES. Elucidativo.

4. O que essa resposta significa é que o mercado não acredita numa gestão de comissários políticos sem experiência de bancos em mercados concorrenciais, nem que as facilitações politicas que pressupõem sejam suficientes para tapar os buracos no BES.

5. O governador do Banco de Portugal vem outra vez dizer que o BES é sólido e que até há quem queira investir no Banco. Uma coisa começa a ser clara: a supervisão do Banco de Portugal falhou completamente em prevenir mais uma crise bancária e já não tem credibilidade para fazer estes anúncios. Afinal de contas estava tudo tão sólido que teve á pressa de coadoptar uma nova administração, tudo sob a pressão da urgência e sem respeito formal pelos acionistas, sem sequer aguardar pela assembleia geral num ambiente de normalidade - uma contradição completa. Já vimos a credibilidade que o mercado deu a esses anúncios.

Atualização (17 julho): excelente artigo de opinião por Sandro Mendonça no Expresso online, (desBESificar o país, aqui).


quinta-feira, 10 de julho de 2014

ES: não olhes para o que fazemos (ou fizemos) ...


A capitalização bolsista do BES era hoje um pouco abaixo de 3000 milhões de euros, após a interrupção das transações em bolsa, depois de fortes quedas recentes da cotação (ver gráfico, obtido no Google Finance). A ESFG controla 25% do capital do BES, que portanto vale cerca de 700 a 800 milhões de euros - ou seja, menos do que a exposição direta conhecida do BES ao grupo GES, que não inclui potenciais impactos do buraco BESA nem o risco indireto do BES aos incumprimentos do GE (como é que o BES será afetado pelas consequencias - incuindo possiveis falencias - de empresas clientes do BES que têm exposição á divida das empresas do universo GES? Informação recente do BES estima que essa componente possa valer cerca de 2000 milhões de euros.). E poderá valer ainda menos quando o mercado retomar as transações das acções.
Ou seja, o valor da "jóia da coroa" da familia, e do GES, não chega sequer para cobrir o risco do BES á divida do GES. No caso do GES querer entregar a sua posição no BES como garantia ou colateral, o valor da sua participação no BES estão longe se serem suficientes, nas condições de mercado a curto prazo. Isto dá uma perspetiva sobre a dimensão do problema, mesmo ignorando que a familia, e o GES, apenas controlam uma parte da ESFG ... Note-se que a familia própriamente dita tem conseguido controlar a gestão do BES através de uma posição de 25%, mas na realidade apenas detém cerca 25% desses tais 25%, graças á conhecida cascata de sociedades do grupo (deterá um pouco mais do que isso, se se anexarem as participações individuais de alguns membros da familia).
Fala-se que o papel (ou divida) do GES em circulação no mercado poderão ser 5 a 6 mil milhões de euros, um numero "colossal" (diria um tal Vitor Gaspar ...). A pergunta é como é que se contruíu esse passivo - uma pergunta que continua sem resposta, mas que certamente se deve a prejuizos continuados de exploração e a negócios ruinosos, sistematicamente escondidos debaixo dos tapetes. O GES diz excluir outras variedades menos conformes de desaparecimento de fundos, mas qual há quem desconfie disso. E ainda vamos ver aparecer a questão das responsabilidades dos auditores.
Durante anos os accionistas principais de um banco de referencia nacional andaram a enganar tudo e todos - ao mesmo tempo que os mesmos protagonistas perseguiam os clientes que não conseguiam esconder do banco as suas dificuldades financeiras - incluindo os pequenos depositantes e credores com dificuldades de tesouraria. O impacto final de tudo isto, inclusivé para além da esfera estritamente financeira, está ainda muito longe de se perceber ....
O BES fez um aumento de capital recente de cerca de mil milhões de euros. Um incumprimento do GES arruinará o efeito do aumento de capital, feito para melhorar os ratios do banco - e novo aumento de capital vai ser necessário a curto prazo. A possibilidade do saneamento do balanço do BES terminar no desaparecimento do banco, por fusão noutro banco, nacional ou internacional, começa a ser inquietante.
E o assunto da nova equipe de gestão é tudo menos reconfortante, por aquilo que significa: mostra que para gerir um BES nestas circunstancias o parece ser importante são as ligações politicas e a capacidade de facilitação e influencia junto do poder politico e da "nomenclatura" no poder, e que são essas capacidades que contam. Isso é especialmente gritante no caso do indigitado presidente da comissão executiva, um gestor sem experiencia de banca, que fez carreira empresarial num monopólio sem concorrencia a sério e que alavancou isso para se tornar politicamente relevante (muitas vezes com teses tecnicamente duvidosas) como ideologo de serviço ao governo e ás teses da austeridade radical. Um investimento que parece que lhe continua a render bons "dividendos".

(Atualizado em 11 de julho)