sábado, 28 de abril de 2012

Endividado por não crescer, ou sem crescer por estar endividado?

Nicolau Santos comenta no Expresso Economia (28 abril) sobre a dívida (portuguesa) e as crises soberanas. E recorda Reinhart e Rogoff (R&R):
  • Se (R&R) estão certos (no sentido em que países com dívidas públicas acima dos 90% têm o crescimento comprometido), então Portugal, cuja divida pública está agora nos 107% do PIB, não tem nenhumas condições de voltar a ter crescimentos acima dos 2% durante esta década, o que agravará todos os nossos problemas.
Reinhart (da U. Maryland) e Rogoff (da U. Harvard) têm publicado abundantemente à volta das relações entre dívida soberana e crescimento, e são muito citados, tendo acumulado centenas de citações em pouco tempo. Num post no voxeu.org, "Debt and growth revisited" (11 agosto 2010). R&R sumariam o exercício de mais de 2000 registos de vinte países desenvolvidos no período 1790 a 2009. Na figura seguinte sumariamos a conclusão mais importante: quer a média como a mediana para cada classe de nível de crescimento anual (%PIB) sugerem uma correlação negativa entre endividamento e crescimento: quando o endividamento é inferior a 30% do PIB, o crescimento andou pelos 3.5 a 4 %, mas quando o endividamento é superior a 90% PIB, o crescimento andou pelos 1.5 a 2%.


Correlação não é casualidade, mas depois de explorarem os dois sentidos possíveis, R&R concluem pelo sentido endividamento causa baixo crescimento, e retiram da análise importantes consequências sobre políticas económicas:
  • For many if not most advanced countries, dismissing debt concerns at this time is tantamount to ignoring the proverbial elephant in the room.
Krugman, num post de agosto de 2010, é um dos que levantou  dúvidas sobre a causalidade sugerida por R&R entre dívida e crescimento (no sentido de que a causa de uma nível elevado de dívida é a causa de um baixo crescimento da economia), e salienta a importancia que esses trabalhos têm tido na construção das políticas pró-austeridade:
  • In practice, the article has been widely used to claim that there’s a red line of 90 percent in the public debt to GDP ratio that one crosses at one’s peril.
Trabalhos recentes têm levantado dúvidas sobre a causalidade dívida / crescimento. Na realidade a figura anterior pode também ser "lida" como sugerindo uma causalidade reversa da defendida por R&R: baixo crescimento da economica cria endividamento - uma narrativa também muito plausível. Os italianos Hugo Panizza (da UNCTAD) e A. Presbitero (da U. Politécnica de Marche) levantaram em trabalho recente (2012) dúvidas sobre a causalidade proposta por R&R: 
  • To answer the question "Do high levels of public debt reduce economic growth?" we follow the econometric procedure of trying to reject the proposition that “debt has no growth effects”. Our research shows that this proposition cannot be rejected, so it may well be that it is true. We cannot, however, be sure.
  • we do not find any evidence that high public debt hurts future growth in advanced economies.
  • Therefore, given the state of our current knowledge, we believe that the debt-growth link should not be used as an argument in support of fiscal consolidation.
Estes autores fazem assim o ponto de situação sobre a controversia da causalidade divida / crescimento:
  • Our reading of the empirical evidence on the debt-growth link in advanced economies is:
    • There are many papers that show that public debt is negatively correlated with economic growth.
    • There is no paper that makes a convincing case for a causal link going from debt to growth.
    • Our new paper suggests that such a causal link does not exist (more precisely, our paper does not reject the null hypothesis that there is no impact of debt on growth).
Claro que não argumentam que o crescimento da dívida possa ser sempre sustentável, mas sugerem uma importante consequência:
  • The fact that we do not find a negative effect of debt on growth does not mean that countries can sustain any level of debt. There is clearly a level of debt beyond which debt becomes unsustainable, and a debt-to-GDP ratio at which debt overhang, with all its distortionary effects, kicks in. What our results seem to indicate, however, is that the advanced economies in our sample are still below the country-specific threshold at which debt starts having a negative effect on growth.
O que isto significa é que pode ser possível o crescimento mesmo com níveis elevados de endividamento. O que não é nenhuma surpresa: no passado países como a Itália ou a Grécia conheceram períodos de crescimento interessante mesmo com elevadíssimos níveis de endividamento (acima dos tais de 90% de R&R). Na realidade sem a crise de identidade do euro, e a inflexibilidade de uma união monetária sem partilha de responsabilidades, as taxas de juro da divida soberana provavelmente nunca teriam explodido para os chamados países periféricos, tal como aconteceu.
O prognóstico de Nicolau Santos pode não ser tão inevitável como sugere, pelas razões que sugere.
Mas se a causalidade afinal for reversa (ou seja: se o endividamento elevado for causado por baixos crescimentos) então o que está a acontecer em Portugal, e não só, é verdadeiramente catastrófico e criminoso: à procura de reduzir à força e à bruta o deficit público está-se a provocar uma forte recessão economica, com crescimentos negativos da economia, de que resultará então um inevitável aumento da dívida pública, então para níveis totalmente insustentáveis.

Atualização, 28 Julho 2012: Martin Wolf faz uma relevante discussão das teses de R&R sob o ponto de vista de política económica, em Objections to providing fiscal support for deleveraging no seu blog no FT. Apesar de pouco desejavel, a divida publica pode não ser tão indesejavel ou perniciosa como querem fazer crer, em especial em situações de "liquidity trap".
  • It is therefore quite possible to get out of debt by going into it, because they are not the same debtors. And the distribution of the debt, not its level, is what matters.
E desmonta as conclusões de um dos últimos artigos de R&R: Debt overhangs: past and present (Abril 2012):
  • the conclusion one cannot draw is that public debt must be kept below 90 per cent of GDP, whatever the cost. Struggling to keep debt below 90 per cent of GDP might be far more costly than letting debt rise above that threshold.
  • The authors probably do not wish to argue that the UK should not have fought World War II because it led to excessive public debt (peaking at close to 250 per cent of GDP). 
  • Again, if the government’s borrowing was aimed at reducing the economic impact of private sector deleveraging, the economic costs of keeping debt below 90 per cent, instead, could well exceed the costs of allowing debt to rise above it. The authors do not analyse such counterfactuals.
  • In the case of Japan, for example, it seems quite plausible that a collapse in growth opportunities after 1990 also lowered investment opportunities. This then generated long-lasting financial surpluses in the corporate sector, whose counterparts were high fiscal deficits. The causality would then indeed go from poor growth opportunities to high public debt, rather than the other way around.
  • Again, let us accept that very high public debt ratios may create problems. None the less, the period after the Napoleonic War was when the UK began its industrial revolution and the post-war period was one of good economic performance, in both the US and UK. The conclusion is that high debt can be perfectly manageable in countries that know how to manage it.
  • It is all about timing. While the private sector is deleveraging and so running large financial surpluses, large fiscal deficits are necessary, provided they can be sustained, as they certainly can be in the US. Once the deleveraging is finished and the economy recovers, the fiscal deficit will need to be closed. The key is to introduce policy commitments on taxes and spending that make a closure of the deficits credible.
(Itálicos da nossa responsabilidade)

domingo, 22 de abril de 2012

Holanda: e a crise continua

Em post anterior referimos a (surpreendente) crise a emergir na Holanda, um dos pilares da política de austeridade e de intolerancia com os deficits dos países da Europa do Sul.
Os últimos desenvolvimentos vão no sentido previsto (ver artigos no WSJ: aqui e aqui): crise governamental por causa das políticas de controlo do deficit, eleições a caminho, reforço da extrema direita, crescendo das franjas anti-euro, ... 
  • The Netherlands has been a key ally of Germany and one of the most vociferous supporters of austerity since Greece's debt problems initiated the euro zone's debt crisis more than two years ago. But its economy is performing poorly and is expected to shrink this year, widening its budget deficit and making it one of the worst-performing in the euro zone.
Entretanto o AAA está também a caminho de desaparecer - e entretanto, se isso acontecer, na zona euro ficam apenas três países ainda com essa notação (Alemanha, Luxemburgo, Finlandia), o que não pode deixar de afetar o próprio euro.
O caso holandês é especialmente interessante porque mostra a instabilidade do sistema na eurozona  e como fácil e rápidamente as situações se podem inverter.
Tal como a Espanha, a Holanda também foi um país "bem comportado" (sobre a Espanha, ver posts anteriores, aqui e aqui). Sob o ponto de vista de endividamento, tem estado melhor do que a própria Alemanha, embora pior do que a Espanha (figura: government consolidated gross debt, % GDP):

Cenário semelhante quanto a deficits / superavits (figura: general government, net lending (+)/net borrowing (-) under the EDP (Excessive Deficit Procedure)) - até 2007 o deficit holandês foi quase sempre inferior ao deficit alemão (mas pior do que a Espanha a partir de 2000):


Apesar das taxas de juro do financiamento da divida público estarem a subir, continuam ainda longe de níveis preocupantes (ainda abaixo de 3%). Mas é muito sintomática como num ápice o deficit público subiu para níveis acima dos tais 3%, despoletando medidas restritivas para poder cumprir o normativo comunitário, na sequência de uma crise imobiliária associada a uma quebra da casa dos 10% (só!) no valor do imobiliário. 
E assim, de repente, os defensores da austeridade na casa dos outros, aparecem agora a lamentar a necessidade de políticas restritivas porque ... afectam negativamente o crescimento, e parecem não ter apoio da opinião pública. Mais desemprego por causa do limite do deficit, numa economia que pode perfeitamente funcionar durante algum tempo com algum deficit acima dos 3%. parece ser coisa difícil de engolir pelo eleitorado holandês. Pelo menos por uma parte deste começa a dizer que então é preferível sair do euro, e mesmo da UE, e voltar à antiga moeda.
Que isto esteja a acontecer no nucleo duro do euro é muito significativo, ao mesmo tempo que em França uma candidata presidencial anti-euro (e pró retorno ao franco) chega aos 20%. Como comenta um analista americano:
  • Core Europe has been worried for some time that an election in a peripheral country would produce a result that was anti-Euro. However the latest developments show strength for anti-Euro candidates in core countries.
(Dados: Eurostat).

(Atualizações: no WSJ e no Guardian, 24 abril. No excelente artigo do Guardian, Robin Wells comenta que:
  • But given that the sober Dutch are in no danger of defaulting on their AAA-rated bonds, why the turmoil and panic? Because, perhaps, the Dutch are indeed sober – and a significant number of them have said "enough". Having seen the devastation inflicted on the Greek, Irish and Spanish economies by tough austerity measures, many have concluded that the pain is simply not worth it to meet an arbitrary 3% deficit rule.
Num post do Projecto Syndicate (France and Frankfurt), Harold James, professor da U. Princeton, fala do origem da regra dos 3%:
  • The 3%-of-GDP cap on budget deficit, established somewhat arbitrarily in the 1990’s, also originated from the traumas of the Mitterrand experiment. Three percent of GDP was the figure that Delors calculated as the maximum deficit compatible with monetary stability in the circumstances of 1983. It then simply hardened into a general European rule in the 1990’s. Financial markets nowadays are much more aggressive than they were in 1981. There is no possibility of a two-year period of experimentation. The result will be very intense pressure for a rapid redesign of European institutions, with the risk that the outcome will lack credibility. )

quinta-feira, 19 de abril de 2012

A crise europeia e a experiencia japonesa

Vários têm referido que na crise atual se entrelaçam pelo menos dois tipos de problemas com uma conjuntura em que os problemas estruturais do euro são por sua vez também uma fonte primária de problemas:
- o problema de excesso de nível de endividamento, que precisa de ser resolvido, mas que também precisa de tempo (caso tipico da Grécia, e, em parte, o caso de Portugal - embora menos do que alguns políticos anunciam aos quatro ventos)
- o problema de "liquidity trap" (cilada de baixa liquidez) em que taxas de juro muito baixas retiram margem de manobran às politicas monetárias e fiscais devido á barreira da taxa nula (como impor taxas de juro negativas? deixar subir a inflação seria uma forma, mas isso deixa a Alemanha nervosa pois tende a desvalorizar o euro, o que não interessa à Alemanha - mas que por sua vez é uma necessidade urgente da zona euro, ver post anterior).
Richard Koo, "chief economist" do Nomura Research Institute, trata esta questão na comunicação à recente INET Conference (Berlim, abril de 2012), recordando as lições da crise japonesa. Koo assinala que a crise atual decorre em simultaneo de dois problemas macroeconomicos e de um problema de fluxo de capitais. O seu texto entitula-se "Revitalizing the eurozone without fiscal union".
O primeiro problema macro reside nos desiquilibrios fiscais por excesso de despesa pública, e o segundo problema é a descapitalização do setor privado depois da bolha (imobiliária) rebentar, num cenário em que as taxas de juro ainda por cima estão muito baratas. O setor privado está a tentar minimizar divida e não maximizar lucros, procurando poupar dinheiro mesmo com taxas de juro quase nulas, retirando liquidez à circulação monetária e desencadeando uma espiral deflaccionária, situação que Koo chama de "balance sheet recession (recessão pelo balanço)" e Krugman (e outros) chama de "cilada da liquidez (liquidity trap)".  Nesta situação as politicas monetárias são ineficazes:
  • Left unattended, these economies will follow the path of the US during the Great Depression, when GDP shrank 46 percent in just four years because everyone was paying down debt and there were no borrowers.
  • Monetary policy is largely ineffective in this type of recession because those whose balance sheets are underwater are not interested in increasing their borrowings at any interest rate.    Nor will there be many lenders, especially when the lenders themselves suffer from balance sheet problems. The only way to prevent the economy from falling into a deflationary spiral in such a recession—which happens only after the bursting of a debt-financed bubble—is for the government to borrow and spend the excess private savings.
  • Japan has used such policies to keep its GDP above bubble-peak levels for the last two decades even as an 87 percent decline in commercial real estate values prompted massive corporate deleveraging. Unfortunately, Japan’s lessons went largely unrecognized in the West until the 2008 Lehman failure and subsequent financial crisis
Os slides apresentados por Koo (e não incluidos no texto, e com um título diferente mas elucidativo: "The World in Balance Sheet Recession: What Post-2008 West Can Learn from Japan 1990-2005") mostram e comparam a crise recessiva ao nível do balanço nos paises europeus e no Japão. A figura seguinte (slide 19 de Koo) mostra como se gerou um volume enorme de poupança privada na zona euro, ao mesmo tempo que o setor público acumulava deficits crescentes:


(Os slides 20 e 22 de Koo mostram como essas situações se têm dado ao nível da Espanha e de Portugal).
Logo a situação atual vive um conflito entre dois problemas macroeconómicos com implicações contraditórias, um dos quais apela a políticas de austeridade e outro apela a estímulos fiscais. Koo assinala que, em simultaneo, a zona euro conhece um problema único relativo a fluxo de fundos, problema inexistente nos países de moeda própria (USA, UK, ...). O problema deriva de como transferir dentro da eurozona as assimetrias territoriais entre as disponibilidades de poupanças privadas (à procura de aplicações rentaveis) e as necessidades de financiamentos públicos, dentro de uma zona sem risco cambial, com baixas taxas de juro, mas agora com diferentes níveis de risco decorrentes da percepção clara de falta de união fiscal pelos mercados. Ver o elucidativo slide 18 de Koo: os mercados, que até 2008 viam o risco do euro como único para os países da eurozona, passam a partir daí a ver cada vez mais os riscos de cada pais como diferentes e autónomos, aumentando brutalmente a variancia das taxas:
Um problema que torna a situação muito mais dificil e complicada de gerir:
  • fund managers at French and German banks were busily moving funds into Spanish and Greek bonds a number of years ago in search of higher yields, and Spanish and Portuguese fund managers are now buying German and Dutch government bonds for added safety, all without incurring foreign exchange risk.
  • Indeed, the excess domestic savings of Spain and Portugal fled to Germany and Holland just when the Spanish and Portuguese governments needed them to fight balance sheet recessions. That capital flight pushed bond yields higher in peripheral countries and forced their governments into austerity when their private sectors were also deleveraging.
  • With the recipients, Germany and Holland, also aiming for fiscal austerity, the savings that flowed into these countries remained unborrowed and became a deflationary gap for the entire eurozone.    It will be difficult to expect stable economic growth until something is done about these highly pro-cyclical and destabilizing capital flows unique to the eurozone. 
Recessões deste tipo serão uma novidade - apesar do Japão a ter conhecido nas duas ultimas décadas. Mas poucos terão prestado atenção:
  • It took Japan ten years to climb out of the hole created by this policy mistake.    With the disastrous Japanese experience there for everyone to see, there is no reason for Spain, Ireland and other eurozone countries facing the same predicament to repeat Japan’s mistake.
Koo defende limitações ao mercado de dívida pública, que limitem estes fluxos perniciosos e preversos de capitais: não permitir endividamentos públicos transfronteiriços, limitando a compra de dívida pública ao seu próprio mercado, algo dificil de aceitar pelos eurocratas. Koo argumenta que nenhum dos tratados da UE prevê uma situação como a atual e por isso precisam de alterações, se é que se quer salvar o euro:
  • Limiting the sale of government bonds to citizens would be a small price to pay for saving one of mankind’s grandest and noblest accomplishments.
Vários têm recordado que cada vez mais a falta de opções na eurozona se aproxima do cenário do padrão ouro, que estve no cerne da crise da grande depresão. Por exemplo, em texto recente, Robert Skidelsky assinala que
  • Moreover, the eurozone itself is a mini-gold standard, with heavily indebted members unable to devalue their currencies, because they have no currencies to devalue. With fiscal, monetary, and exchange-rate policies blocked, is there a way out of prolonged recession?
(Itálicos da nossa responsabilidade)

(Atualização, 12 de Maio: Martin Wolf discute este paper de Koo, e as situações de "balance-sheet recession", em post do seu blog no Financial Times. E defende que a situação atual em que a divida dos USA (e do UK) aumenta, mas os juros caiem para próximo de zero, é precisamente uma situação desse tipo, que resulta numa brutal contração da procura agregada
  • The conclusion, then, is that we should not be surprised by what has happened to government bond yields in countries with balance-sheet recessions, floating currencies and a reasonable history of fiscal and monetary management. They have followed Japan because, as Mr Koo argues, they are very like Japan. This condition is also likely to last for a long time. There is no danger of a loss of creditworthiness in the medium term. Indeed the danger is rather the opposite: that the creditworthiness will last, as in Japan, for a dangerously extended period. )
(Atualização, 18 de Maio: Martin Wolf apresenta em outro post recente do seu blog no FT uma interessante versão da figura anterior sobre a convergencia (primeiro, 1992-98) e a divergencia (depois, 2008 até agora) das taxas de juro entre quatro importantes paises da eurozona (Alemanha, França. Espanha, Itália) e UK:
No período 1998 a 2008 toda a divida da eurozona era tratada quase da mesma maneira, e não muito diferente da divida britânica. A redução dos custos de endividamento dos chamados paises da periferia foi um dos bonus da adesão ao euro. O seu fim, criado pela posição alemão que desmistificou públicamente a falsa aparência de coesão e solidariedade financeira dentro da eurozona, ditou também a divergencia atual e a crise das dividas soberanas na Europa). 

quarta-feira, 18 de abril de 2012

Ainda a Espanha e a crise europeia

No post anterior mostrou-se que o nível de endividamento público da Espanha foi, na última década, inferior ao endividamento da Alemanha (e da França). Mas não é só no nível de endividamento que a Espanha mostrou uma boa performance durante a década. Também na questão do deficit a performance espanhola foi melhor do que a alemã.
Em 2007, a evolução do deficit público espanhol e alemão era como se mostra na figura:


Entre 2001 e 2005 a Alemanha teve deficits governamentais acima dos 3% do PIB - uma reiterada e grave violação das regras europeias (segundo o pensamento atual da própria Alemanha), enquanto que a Espanha tinha baixíssimos níveis de deficit público (menos do que 1%, e mesmo superavit entre 2005 e 2007).
Em 2007 a Alemanha tinha corrigido a trajetória e mostrava um superavit marginal - enquanto que na Espanha era significativo (cerca de 2%).
Logo, em vésperas da crise financeira, a situação era bem clara, e quem tinha as finanças publicas em ordem era muito mais a Espanha do que a Alemanha. E quem tinha uma história de prevaricação e de incumprimento das regras da UE era a Alemanha.
A situação atual da Espanha nada tem portanto a ver com deficits públicos excessivos e/ou reiterados, nem com endividamentos excessivos e irresponsaveis. A atual narrativa alemão sobre a crise é uma fantasia, e a sua apropriação pela direita ultra liberal é oportunismo ideológico.
O economista alemão Norbert Walter, anterior "chief economist" do Deutsche Bank Group e responsavel pelo Deutsche Bank Research., comentava em recente comunicação ("The culprit of the global crisis - the german mercantilism!"), apresentada na conferencia do INET Institute for New Economic Thinking, em Berlim (abril 2012):
  • In the 1990s, the German current account was permanently deep in the red. German real estate prices were far too high, as were unit labor costs due to the effects of unification and a highly pro-growth policy. This led to a debate about the country’s lack of competitiveness, and it was even labelled “the sick man of Europe”. It is astounding that internationally there is no recollection of something as recent as this.
Em 2009 a situação dos deficits tinha-se alterado, e a Espanha, quase de súbito e na sequência do rebentar da bolha privada no imobiliário, conhece um expressivo deficit público,  superior a 10%, enquanto que o deficit alemão também subia, e voltava mesmo a ultrapassar novamente o limite máximo dos 3% definido pelas regras comunitárias:


Note-se que até 2010 o comportamento (tendencias) do deficit italiano (também incluido nesta ultima figura) não era muito diferente do alemão.
O caso espanhol mostra que:
- que a questão europeia é mais do que uma questão de gastos excessivos de governos sem controlo na despesa, mas é sim um problema sistémico associado aos mecanismos da zona euro;
- que a crise não é uma história de excessos irresponsaveis - embora isso tenha tido um papel na Grécia. Mas convém recordar que irresponsabilidades existiram quer do lado da Grécia, quer das autoridades europeias e dos países parceiros (Alemanha incluída) que durante algum tempo foram fechando os olhos ao que por lá se passava;
- que a enfase obcessiva sobre baixos déficits publicos (veja-se a ultima alteração do tratado) não é "silver bullet" para muios dos problemas que podem ocorrer no presente e no futuro da zona euro, e estará longe de garantir a estabilidade da zona euro.

(Fonte dos dados: Eurostat, "General government deficit/surplus"; itálicos da nossa responsabilidade)


(Atualização, 17 maio: De um bom artigo no FT sobre as diferenças entre a Grécia e a Espanha ou Irlanda:

  • This quasi-federal Spain, under the umbrella of the European Union, has been a conspicuous success over the past 25 years, seeing not only a big jump in national prosperity but wealth spread throughout the whole country for the first time in Spanish history.)

segunda-feira, 16 de abril de 2012

Espanha: de quem é a responsabilidade?

Os mercados estão a penalizar Espanha e os níveis de taxas de juro voltaram nos últimos dias para níveis próximo do insuportável a médio e longo prazo. Vejamos os números do endividamento:

Em 2000, os níveis de endividamento da Espanha, da França e da Alemanha eram semelhantes (ver figura). Durante a maior parte da década, a Espanha reduziu o endividamento publico, enquanto este crescia na Alemanha e na França, 
Em 2007 a Espanha tinha uma divida publica menor que 40% do PIB, contra mais de 60% na Alemanha e na França. De 2007 até 2010 o endividamento publico cresceu quer na Espanha como na Alemanha e na França . Em 2010 era de 60% na Alemanha e cerca de 85% na Alemanha e na França. Ou seja, continuava bem inferior em Espanha. 
Para a Alemanha, o que lá tem acontecido chama-se responsabilidade fiscal. Mas para a Alemanha, e outros países europeus, a Espanha é um caso de irresponsabilidade fiscal. Até um Sarkozy desesperado recorre em campanha eleitoral ao que diz ser o mau exemplo espanhol ... enquanto que a divida publica francesa sempre foi, e é, superior à da Espanha.
Em todo este período o nível de endividamento da Itália (não incluido na figura) esteve sempre acima dos 100% do PIB, e não conheceu qualquer redução significativa (mais do que 10%) ao longo do período em análise.
Krugman comentou esta situação num post, e depois num comentário (NYT), classificando a situação como louca:
  • In a way, it doesn’t really matter how Spain got to this point — but for what it’s worth, the Spanish story bears no resemblance to the morality tales so popular among European officials, especially in Germany. Spain wasn’t fiscally profligate — on the eve of the crisis it had low debt and a budget surplus. Unfortunately, it also had an enormous housing bubble, a bubble made possible in large part by huge loans from German banks to their Spanish counterparts. When the bubble burst, the Spanish economy was left high and dry; Spain’s fiscal problems are a consequence of its depression, not its cause.
  • This is, not to mince words, just insane. Europe has had several years of experience with harsh austerity programs, and the results are exactly what students of history told you would happen: such programs push depressed economies even deeper into depression. And because investors look at the state of a nation’s economy when assessing its ability to repay debt, austerity programs haven’t even worked as a way to reduce borrowing costs.
  • What is the alternative? Well, in the 1930s — an era that modern Europe is starting to replicate in ever more faithful detail — the essential condition for recovery was exit from the gold standard. The equivalent move now would be exit from the euro, and restoration of national currencies. You may say that this is inconceivable, and it would indeed be a hugely disruptive event both economically and politically. But continuing on the present course, imposing ever-harsher austerity on countries that are already suffering Depression-era unemployment, is what’s truly inconceivable.
O problema da bolha imobiliária, que cria problemas à banca privada e parece estar a contaminar a percepção do risco da dívida pública, pode ainda não estar resolvida (ver aqui).
Seguindo um link de Krugman, é interessante ver a exposição da banca de vários países à divida de quatro dos países da UE em dificuldades (Grécia, Irlanda, Portugal e Espanha):


As responsabilidades de Portugal e da Grécia são coisa pequena comparadas com as da Espanha (e da Irlanda também). Mas a exposição da banca alemã à divida não privada espanhola e irlandesa não é nenhuma brincadeira. A culpa será neste caso um exclusivo do devedor? 

(Itálicos da nossa responsabilidade)

(Atualização: no blog Free Exchange do The Economist, mais sobre o mesmo tema relativo à crise europeia:
  • It is much more about the complex macroeconomics of a suboptimal currency union, and about how Europe as a whole has failed to recognise this challenge in the euro’s first decade.
  • So we have a somewhat paradoxical situation here: Ireland and Spain, while living up to the rules of the Stability and Growth Pact, were not fiscally prudent considering the macroeconomics of a currency union, whereas Germany, by violating the deficit limits, did what good economics would prescribe. (Sadly, it seems to have forgotten this lesson.) 
  • Two conclusions follow: first, the Stability and Growth Pact was utterly inappropriate for such a monetary union; second, this crisis is also about fiscal policy, even in Spain and Ireland. )

sexta-feira, 13 de abril de 2012

Soros e Rubini: diagnósticos sombrios sobre a Europa

Dois nomes conhecidos da finança internacional fazem em dias sucessivos análises semelhantes da (má) situação europeia e da falta de expectativas das políticas atuais.
Primeiro, George Soros, num post entitulado "Reversing Europe’s Renationalization", antecipa tempos difíceis para uma União Europeia ainda incompleta e apela a uma mudança de rumo político, para além das preferencias do Bundesbank:
  • The fundamental problems have not been resolved; indeed, the gap between creditor and debtor countries continues to widen. The crisis has entered what may be a less volatile but potentially more lethal phase.
  • Whether or not the euro endures, Europe faces a long period of economic stagnation or worse. Other countries have gone through similar experiences. Latin American countries suffered a lost decade after 1982, and Japan has been stagnating for a quarter-century; both have survived. But the European Union is not a country, and it is unlikely to survive. The deflationary debt trap is threatening to destroy a still-incomplete political union.
  • The only way to escape the trap is to recognize that current policies are counterproductive and change course.
  • The Bundesbank will never accept these proposals, but the European authorities ought to take them seriously. The future of Europe is a political issue, and thus is beyond the Bundesbank’s competence to decide.
Noutro post, entitulado "Europe’s Short Vacation", N. Roubini segue uma linha semelhante, e avisa para a necessidade urgente de um euro menos forte:
  • Without a much easier monetary policy and a less front-loaded mode of fiscal austerity, the euro will not weaken, external competitiveness will not be restored, and the recession will deepen. And, without resumption of growth – not years down the line, but in 2012 – the stock and flow imbalances will become even more unsustainable. More eurozone countries will be forced to restructure their debts, and eventually some will decide to exit the monetary union.
Sem um euro mais competitivo, os países mais frágeis da União Europeia apenas podem ver a sua situação dificultada pelas políticas agravar-se:
  • Moreover, while über-competitive Germany can withstand a euro at – or even stronger than – $1.30, for the eurozone’s periphery, where unit labor costs rose 30-40% during the last decade, the value of the exchange rate would have to fall to parity with the US dollar to restore competitiveness and external balance. After all, with painful deleveraging – spending less and saving more to reduce debts – depressing domestic private and public demand, the only hope of restoring growth is an improvement in the trade balance, which requires a much weaker euro.
A conclusão de Rubini é que a UE verá agravar-se o clima recessiva.
Mas um euro mais fraco é a última coisa que o Bundesbank e a Alemanha querem ouvir. Uma situação que até lhes convém: na realidade sob a capa do equilibrio orçamental, esconde-se um proteccionismo latente - um euro mais fraco significaria muito mais concorrência para as exportações alemãs. 

(Itálicos da nossa responsabilidade)

quarta-feira, 11 de abril de 2012

As oportunidades dos pequenos

António Vitorino publicou recentemente um texto, em conjunto com Vaira Vike-Freiberga, antiga presidente da Latvia. Parece que o texto, publicado pelo Project Syndicate (3 de abril) com o título "A German Europe?", passou despercebido nos media. Mas vale a pena reflectir sobre esse texto, considerando a experiencia dos autores no "inner side" mais recondito de como se faz e acontece a poltica europeia em Bruxelas.
Os autores argumentam que o aumento de peso de Berlim (e de Paris) é também, nas condições atuais, uma oportunidade para os pequenos que sejam capazes de ter a audácia e a ambição de pensar o cenário europeu em grande, muito em especial no domínio das relações internacionais:
  • with Germany introverted, France downgraded, and Britain semi-detached, the big story in European foreign policy is that the time has come for the little guy who thinks big.
  • So the answer today to Henry Kissinger’s famous question about whom he should call when he wants to speak to Europe, is not necessarily “the German chancellor.” 
Pequenos como a Suécia ou a Polónia, e por que não mesmo Portugal ou a Latvia.
  • As the “big three” increasingly pursue their own narrowly defined national interests, however, other EU member states are emerging as leaders in key foreign-policy fields.
  • Moreover, Germany, it seems, is becoming a “geo-economic power” driven by the needs of its export sector. By using economic means to pursue its foreign-policy ends, Germany is gradually turning its back on its European partners.
  • So, Poland and Sweden:  Europe needs your leadership. But that might not be enough in an EU with more than 500 million citizens. Other EU states need to follow their example in order to make European foreign policy truly effective and influential.  
A nossa leitura é que o dominio das relações internacionais é usado pelos autores para mostrar como a força das iniciativas dos pequenos paises pode ser muito relevante na politica europeia. Porventura mesmo no domínio económico e fiscal.
Mas claro - é preciso ter essa capacidade e essa ambição. É pena que alguns pequenos países, como Portugal, a tenha abandonado.

(Itálicos da nossa responsabilidade)

quarta-feira, 4 de abril de 2012

Sobre a tal redução de salários para aumentar a competitividade

Citando um trabalho sobre a tendencia dos salarios baixarem nos USA, um post de Krugman chama a atenção para o facto de uma percentagem substancial de trabalhadores americanos não terem visto os seus salarios subir em termos nominais, e essa fracção ter subido muito de 1980 até agora - da casa dos 7% para cerca de 17%. Krugman toma o facto como uma evidencia sobre a falta de procura (não de oferta), E tira conclusões que são muito relavantes para nós:
  • The stickiness of wages even in the United States — which has one of the most “flexible”, aka brutal, labor markets in the advanced world, makes it clear just how huge the costs of the eurozone strategy of “internal devaluation” — getting wages down in peripheral economies, until competitiveness is regained — really is. By asking that Ireland, Spain, Portugal achieve double-digit falls in nominal wages, the Germans and the ECB are actually demanding something that basically never happens.
  • Very important stuff.
  • Oh, and someone is sure to chime in and say that this proves that the solution to unemployment is to make wages more flexible. No, it isn’t: in a liquidity trapped, deleveraging economy lower wages would actually worsen the situation.
Isto num dia em que o presidente do BCE anuncia preocupações sobre a inflação, seu grande designio fundacional (não o crescimento economico ou o bem estar dos europeus), o que leva o WSJ a dizer que
  • His hawkish emphasis on inflation risks suggests the central bank doesn't plan to take further steps against the mounting probability of a renewed recession in the euro zone
  • Instead, Mr. Draghi put the onus on national governments in the euro zone to stimulate growth through labor-market and other structural overhauls, saying his job is to keep annual inflation around 2%
Ao mesmo tempo, também o memso WSJ anuncia indicadores sobre o agravar do cenário recessivo sobre a economia europeia.

domingo, 1 de abril de 2012

Portos e ferrovias: desafios para Portugal

Um artigo no suplemento de Economia do Expresso, sobre a linha de mercadorias a alta velocidade (proxy anunciado do renegado TGV), confirma que afinal não há nem planos estudados nem ideias definidas sobre como a construir nem como fazer a sua integração com os planos ferroviários espanhol e frances.
O transporte de mercadorias é sem duvida importante, em especial em ligação com os portos nacionais. Mas atenção: Sines é nesse contexto muito importante - mas não se pode querer ligar só Sines e esquecer os outros portos nacionais, especialmente os do Norte.
Sines é especialmente importante na nova geografia das rotas transatlanticas, na sequência das alterações do canal do Panamá. Portugal pode ter aí uma grande oportunidade - mas terá aí também uma grande concorrência internacional, em particular dos vizinhos Espanha e Marrocos (pelo menos), se é que não está já mesmo atrasado na corrida.
Um artigo muito recente da edição impressa do The Economist (24 março 2012), integrado numa série sobre "building euro zone competititiveness" trata desta questão, em especial dos portos portugueses. O subtítulo antecipa a conclusão: "Portugal needs to privatise its ports to reap the full benefits of its location", como medida para baixar tarifas por aumento da concorrência entre os operadores portuários.
Sem prejuízo da importancia da ferrovia, o Governo será acima de tudo testado na sua capacidade de abrir os portos à concorrência e mesmo de os privatizar. Aí se verá a sua capacidade de realmente afrontar lobbies instalados e muito fortes (recorde-se o que aconteceu há uns tempos acerca de problemas numa empresa a operar no porto de Aveiro e os cinco dias de greve nacional que desencadeou). A recente visita do primeiro ministro a Sines (porventura sugerida pelo artigo do The Economist?) para anunciar generalidades e boas intenções é um ato político fácil. Vejamos como é que vai lidar com a realidade pura e dura dos interesses instalados nos portos nacionais.


O problema é que as ideias andam muito mais com as pessoas do que com as mercadorias. A ideia de que Portugal não precisa de transporte ferroviário de pessoas a alta velocidade é uma das ideias mais provincianas e emblemáticas da neoparolice lisboeta, na onde de cima pela mão da política ultra liberal do atual governo. São as pessoas que viajam e com elas as ideas, e através delas multiplicam-se as oportunidades de cruzamento de ideias, processo básico dos mecanismos sociais de inovação. A política anti TGV redunda numa política anti-inovação por não facilitar a mobilidade de pessoas e ideas num país com uma geografia excentrica relativamente ao espaço europeu (post anterior sobre o assunto, aqui).
O enorme impato que o comercio teve na europa dos fins da idade média e princípio dos tempos modernos deveu-se ao facto nas mercadorias não andarem sózinhas. Foram os transportadores que foram os agentes de inovação. Combóios com quilometros de mercadorias não são alternativa para a questão da inovação e das pessoas, sem prejuízo da sua importancia própria (nota: um porta contentores de ultima geração leva o equivalente a um comboio de mercadorias com 85 kms!).

Este artigo do The Economist recorda-me o meu amigo Henrique Neto, político que há muitos anos vejo a defender para Portugal políticas ferroviárias integradas com audaciosas ideias sobre portos de águas profundas em Portugal. Por isso lhe dedicamos este post, mesmo sabendo que nem sempre as nossas ideias sobre o TGV coincidem.

(Atualização, 2 Abril: o Público noticia hoje que "a linha de bitola europeia para Badajoz que o Governo quer construir não tem continuidade assegurada no outro lado da fronteira nem os operadores ferroviários a desejam" numa notícia entitulada "Passos anunciou linha ferroviária que não tem continuação em Espanha". Uma vez mais afinal as soluções que diziam ter e estarem bem estudadas e preparadas parecem não passar de fumaça.)