sábado, 4 de novembro de 2017

Lab, Fab, Apps (II)

Há uma figura na "introdução" do relatório Pascal Lamy, referenciada como figura 1, que merece análise crítica.
A figura não é citada no texto. A legenda da figura diz que é uma "comparação e taxas de crescimento (sic!) de publicações científicas, publicações científicas altamente citadas, investigadores, patentes e valor acrescentado em setores de alta tecnologia, na UE e nos USA".
Esta figura é um monumento de omissões e ideias equívocas. E fica-se a pensar: como é que uma coisa destas aparece num relatório destes?



Em primeiro lugar, as legendas estão incompletas: em nenhum sitio se diz a que cor correspondem os valores da UE e os valores da UE. Adivinhe quem for capaz ou quem quiser. (Suponho que EU seja a cor roxa, os USA a cor laranja).
Em segundo lugar, as taxas de crescimento dizem respeito a que período temporal? Adivinhe quem for capaz ou quem quiser.
Em terceiro lugar, a confusão entre as unidades dos vários eixos é completa. Parece sugerir que o numero absoluto de investigadores (a tempo inteiro) se mede por uma percentagem!. É manifesto que diferentes eixos têm diferentes unidades - mas que não são explicitadas. Adivinhe quem for capaz ou quem quiser.
Dificilmente um aluno de mestrado ou de douramento que apresentasse uma figura assim, numa dissertação ou tese, mereceria a simpatia do júri - e com razão.


A ideia subjacente ao boneco parece ser relacionar a intensidade de I&D, medida pelo número de investigadores (em termos absolutos e relativos), com os outputs do sistema (publicações indexadas e citações, patentes, alta tecnologia) e simultaneamente comparar as performances da UE e dos USA sob esses pontos de vista. A preocupação é que a EU é uma força ("powehouse") de produção de conhecimento através de recursos de I&D, mas é pouco capaz de transformar esse conhecimento em inovação e crescimento: a EU sofre de um "deficit de inovação".
Ora a escolha das métricas usadas na figura nada tem de "científico", ou seja, nem sequer está de acordo com o que sabemos sobre I&D e os seus impactos no desenvolvimento económico e social. Sabemos bem que nenhum desses outputs é, por si só, credível para medir o impacto do sistema de I&D (e dispenso-me aqui de referir literatura sobre isso). Sabemos que as citações bibliográficas são uma medida equívoca, enviesada, que medem acima de tudo o que é trivial e incremental e não o potencialmente diferente, inovador e disruptivo. Sabemos que patentes são uma medida altamente enviesada e pouco credível para comparações multisetoriais e multipolares. Sabemos que a treta dos ditos setores de "alta tecnologia" (inventada pela OCDE) é isso mesmo: uma treta desacreditada como medida dos impactos de I&D, que prejudica países como Portugal em que o papel da industrias ditas tradicionais é fundamental, mas que continuam a assegurar uma grande parte do emprego sustentado e do crescimento económico. E não é a conjunção desses critérios que permite ultrapassar as suas limitações intrínsecas.
Mas é claro que esta figura condensa todo o "framework" tradicional do pensamento "bruxelês", que continua a ignorar os impactos societais de I&D fora das "indústrias" (especialmente as ditas indústrias de "alta tecnologia"), que acha que tudo o que não se reflete em patentes e artigos indexados não existe e que tudo o que não aparece nas estatísticas do Eurostat ou que não se consegue medir com facilidade não tem direito a existir ou a ser reconhecido.
É uma pena que um relatório destes, que tem a ambição de agitar águas e de corrigir uma trajetória, preste uma vassalagem tão acrítica e extemporânea a tais ideias tradicionais, mas fortemente institucionalizadas, que nalguns aspetos são mesmo contraditórias com as recomendações que o relatório depois propõe.

Na realidade, a escolha de outras métricas para os outputs talvez contasse uma história diferente.

(1) A "assimetria" positiva da Europa no mundo é bem traduzida pelos três números que o relatório refere logo na introdução: a Europa representa 24% do PIB global (nas não diz se a preços reais ou em ppp!) e 30% das publicações científicas com apenas 7% da população mundial.

Lab - Fab - App (I)

O comissário Carlos Moedas apresentou o relatório de Pascal Lamy numa sessão plenária do recente Ciencia'17, poucos depois da sua apresentação oficial em Bruxelas.



Trata-se de um relatório com onze recomendações sobre a política de I&D e o seu financiamento pela UE, logo propostas de diretrizes para o próximo programa quadro.
Carlos Moedas apresentou-o com a (boa) qualidade retórica e de enquadramento a que nos habituou, recordando até o papel de um português no grupo geograficamente distribuído de pensadores que marcaram o século XIX e que estruturaram os fundamentos da nossa cultura cientifica e de uma sociedade em que o conhecimento da ciência e a força do pensamento se tornaram centrais para a definição de políticas públicas e o funcionamento da sociedade. A discussão era então aberta (entre eles e com a sociedade), não condicionada por citações melhor ou pior indexadas, pela publicação numa "cidadela fortificada" de publicações "politica e cientificamente corretas": a discussão critica baseava-se na discussão entre humanos e sobre o valor intrínseco das ideias em cima da mesa. Os exemplos que Carlos Moedas referiu até sugerem um grupo de recomendação mútua de pensadores (que sabemos ter existido) - mas isso era, e é, muito diferente do atual sistema de "peer review" que condiciona e limita a imaginação e ousadia dos cientistas e pensadores. E, por consequência, o desenvolvimento da sociedade.

Para além da recomendação de aumentar (duplicar) os fundos I&D na UE, muitas das outras recomendações parecem óbvias para um observador comum. Na realidade, serão mesmo muito óbvias e de simples bom senso dentro do quadro atual do pensamento de políticas públicas para o desenvolvimento económico e social:

- promover ecosistemas colaborativos de investigadores, inovadores, indústrias e governos e dar prioridade a ideias inovadoras com potencial de rápido "scale-up" (através de um (novo) "European Innovation Council")
- modernizar, incentivar e dotar de recursos o sistema de educação e treino para uma Europa criativa e inovadora
- fundamentar as políticas de I&D nos objetivos e impactos propostos, afinar melhor os sistema de avaliação de propostas e aumentar a sua flexibilidade (entenda-se: sair do ciclo fechado das publicações indexadas como a métrica essencial das atividades de R&D)
- mobilizar as redes de investigadores, inovadores e outros atores do sistema societal para grandes missões europeias de inovação e investigação
- racionalizar e simplificar o sistema de financiamento de I&D da UE e promover sinergias entre os vários programas, esquemas e instrumentos comunitários, para ter a ambição de tornar o financiamento da EU na fonte de financiamento de I&D mais atrativa do mundo
- melhorar o alinhamento entre os programas comunitários e os programas nacionais sempre que isso reforce o valor das ambições e missões de I&D na UE e tornar a cooperação internacional uma marca fundamental dos programas comunitários de I&D, incluindo o cofinanciamento (nacional e comunitário) de iniciativas.
- comunicar melhor os resultados e impactos dos projetos comunitários de I&D.
Sejamos razoáveis: tudo isto é razoavelmente trivial e óbvio. Há muito pouco de inovador nestas ideias. Mas isso não lhes retira nem importância nem oportunidade: apenas reconhece que a máquina da politica atual de I&D da UE tem avançado pouco naquilo que deveria ser e que o próximo quadro pode, e deve, ser uma oportunidade de corrigir problemas da tradicional abordagem "bruxelesa".

Das onze recomendações há apenas uma que tem a ver com horizontes novos e diferentes, embora não necessariamente originais: a recomendação #8 fala em mobilizar e envolver os cidadãos, estimulando a sua participação no projeto e nos processos criativos - especialmente na afinação do projeto das tecnologias (uma co-criação social), diria eu, seguindo as ideias de democracia e racionalidade tecnológicas argumentadas por Andrew Feenberg, mas também incluindo o envolvimento societário no "fazer ciência" - ciência para além dos "cientistas" (profissionais) (ver aqui, por exemplo).
Na introdução ao relatório, Pascal Lamy fala em conseguir chegar (e envolver) um público cada vez mais vasto. Numa alusão feliz, mas indireta e provavelmente inconsciente, refere-se ao papel da experiência e da prática no conhecimento (logo na I&D) e fala em considerar a sociedade como um "laboratório vivo de soluções inovadoras para os múltiplos desafios da Europa", em que a participação de todos os atores, privados e públicos, com ou sem fins lucrativos, é precisa e necessária.