sábado, 21 de julho de 2012

O "estranho" (?) caso da divida soberana francesa e do FEEF


Há poucos dias um blog americano publicava o gráfico seguinte como "chart of the day" sob um titulo Look At What Francois Hollande Has Done To French Borrowing Costs, relativo à surpreendente queda das taxas de juro da divida francesa depois da eleição do novo presidente. Na realidade esperava-se exactamente o contrário (ver o nosso post anterior sobre este tema)


Ontem o Jornal de Negócios online anunciava que 
  • o Fundo Europeu de Estabilidade Financeira (FEEF), um dos mecanismos que empresta a Portugal, financiou-se a taxas negativas numa emissão de dívida de curto prazo, à semelhança do que tem acontecido em países como Alemanha e França".
e que
  • O fundo está a beneficiar da mesma procura por parte dos investidores de que têm beneficiado os países do centro e norte da Europa. Apesar da rendibilidade negativa, a procura superou em três vezes o montante colocado.
Que as taxas de França tenham este comportamento é um rombo na "teoria da austeridade" - na realidade é exatamente o contrário inverso do previsto pela teoria. Afinal, e sem as tais medidas drásticas de austeridade, a defesa de uma política diferente não fez disparar as taxas de juro da divida soberana francesa.
Que o FEEF se financie ao mesmo nivel de taxas que a Alemanha e a França é elucidativo da viablidade e oportunidade do eurobonds e coisas semelhantes: os países europeus, incluindo Espanha, Itália, e, e claro, Portugal, podiam estar a beneficiar de baixas taxas de juro através de financiamento indireto por instrumentos financeiros do tipo eurobonds (que uma vez Barroso e a Comissão Europeia tentaram fazer vingar, mas depressa esqueceu perante a pressão alemã). Poderiam com isso evitar deficits públicos tão elevados e terem condições mais propicias para uma retoma do crescimento. As condições para os reajustamentos seriam muito mais fáceis e os sacrificios teriam outros dividendos e outras expectativas de sucesso futuro. Como as taxas de juro francesas parecem mostrar, esta facilidade de financiamento da UE não é uma dádiva ou favor alemão, como a ortodoxia do poder alemão gosta de apregoar. A realidade é muito mais complicada do que isso e muito mais favoravel à Alemanha do que se apregoa.
Ambos os factos anteriores mostram algo em comum: a falta de "safe heavens" suficientes para satisfazer aplicações financeiras seguras (de muito baixo risco). A falta desses refúgios para os investidores tem sido muito referida (recordo Soros, por exemplo). A prática está a mostrar isso. O facto da UE não mostrar conseguir tirar partido disso, em nome de uma teoria inviavel da austeridade e penalização da europa meridional, poderá ainda um dia vir a ser considerado criminoso (pelo menos no sentido moral e politico).




Update, 24 Julho: Gavyn Davies no blog do FT, "Bond yields and disaster risk premia" (figura acima) discute o comportamento recente da divida soberana e a surpreendente tendencia para juros quase nulos, devido à crescente incorporação do prémio de risco de desastre nos juros da dívida soberana
  • the perceived likelihood of an economic disaster (defined as a drop of 10 per cent or more in real GDP) has risen markedly since 2008, after many decades in which the risk of such an event had disappeared from investors’ minds. The reappearance of disaster risk increases the probability of a left tail event in economic growth and reduces the valuation of the equity market.
Como se vê pela figura, por países, há um número significativo de países (da OCDE) a pertencerem ao "The Zero Club", mas
  • Again, the stark difference between Italy and Spain on the one hand, and all other countrieson the other hand, is immediately apparent. Where default risk is effectively nil, as it is in economies with their own central banks, yields are homing in on zero throughout the curve
O caso do Japão será mesmo muito surpreendente: a economia mais endividada do mundo (ou pelo menos da OCDE, ver nosso post anterior Trends among OECD countries: debt, deficit, growth, manufacturing sobre esse assunto) tem um custo quase nulo de divida soberana neste momento!

Update, 25 Julho: No blog Daily Chart do The Economist aparece um interessante gráfico sobre a evolução a longo prazo da taxa de juro das obrigações a dez anos (desde 1860, USA, Alemanha, Itália, Espanha) e que mostra uma apreciável volatilidade a longo prazo, para além de que níveis muito baixos por um longo período de tempo também não são novidade (pelo menos para os USA).

quarta-feira, 11 de julho de 2012

O problema das lideranças e das entrelinhas.

Seria de esperar? Provavelmente. Houve logo quem tenha dito que o acordo da ultima cimeira parecia interessante, mas o problema iam ser depois as entrelinhas dos contratos.
Por isso a súbita recuperação (para pior) das taxas soberanas de Espanha e Itália não surpreendem muito quando se vem a saber que afinal o financiamento directo do sistema bancário pode ficar dependente de garantias soberanas - ou seja, continua a vingar a tese de que as más decisões de bancos alemães têm agora que ser salvas com garantias (logo responsabilidades pela divida) soberanas da Espanha e da Itália (ver artigo no WSJ e notícia no FT).
Depois de ter permitido á banca alemã salvar muito dinheiro no "haircut" final da divida grega através de manobras calculadas no tempo, agora vemos renascer outra vez o mesmo processo: tentar garantir a divida da banca (privada) pelos meios da política pública no contexto europeu.
Pode-se não gostar, e achar isso obsceno (como na realidade nós achamos). Mas essa parece ser a realidade da politica europeia de momento. Mas será uma fatalidade? Os exemplos anteriores sugerem que não necessariamente, e que a pressão da europa meridional pode ter alguma força.
Infelizmente Portugal parece estranho a essa dinamica. Pode-se argumentar que é um tacticismo seguro: somos demasiado pequenos, temos que aguardar o momento para dar a estocada depois de outros forçarem o caminho, coisa que nós não conseguimos fazer.
Mas a nossa leitura é diferente: temos um problema de liderança a nível nacional e a nível europeu. 
Há pouco Pacheco Pereira formulava uma pergunta que muitas começam a equacionar: e se for impossível que esta política de austeridade definida pelo memorando com a troika funcione? (ou seja, que nas circunstancias atuais a política esteja simplesmente errada). Como se sabe muita gente acha isso (e parece que o nosso próprio presidente também), e não têm dúvidas sobre o desastre que está a ser criado por essas políticas.

sexta-feira, 6 de julho de 2012

Os problemas e as soluções

Um modelo simples ajuda a organizar ideias. Com base num post muito recente de Krugman, sistematiza-se a seguir as questões envolvidas na crise atual.

A eurozona debate-se com três niveis de problemas:
1. Um primeiro problema ao nível da solvabilidade do sistema bancário
2. Depois, um problema ao nível da dívida soberana
3. E depois um problema mais profundo de falta de competitividade criado pela fuga de capitais entre 2000 e 2007 (dos países meridionais para a Alemanha, em especial)

e que implicam um programa de respostas também com vários níveis:

1. um processo credível de resgate do sistema bancário e de união bancária, 
2. uma intervenção que permita o normal financiamento da dívida soberana junto dos mercados (firewall, bazooka, eurobonds, projet bonds, ... chame-se o que quiser, mas que passará sempre por algumas formulas de mutualização da divida dentro do espaço da eurozona) 
3. um alto nivel de inflação na Alemanha, para que a Europa meridional não tenha necessidade de uma deflação quase impossivel de aguentar sem graves perturbações (sem isso será difícil uma politica de crescimento que crie condições para os países do sul saírem da crise - mas será também muito difícil o consenso para tal necessário com que os países do dito "norte").
(Atualização, 11 Julho: para uma aplicação do "modelo" ao caso espanhol, ver este post de Krugman)
(Atualização, 12 Julho: um modelo alternativo, mas semelhante: post em Vox)

Várias análises sugerem que as medidas da última cimeira serão insuficientes para estabilizar os mercados. Ver por exemplo, as análises de Gavyn Davies no FT (More questions than answers after the summit) ou de Paolo Manasse (A spread-fixing scheme: Monti's pyrrhic victory?) e de Paul de Grawve (Why the EU summit decisions may destabilise government bond markets) no Vox. As últimas noticias não são animadoras e parecem indicar que os mercados começam a pressentir essas dificuldades e voltam a pressionar, passada a fase inicial de satisfação. As noticias dos media hoje mostram novamente níveis insuportáveis de taxas de juros para a divida soberana espanhola a 10 anos, parecendo confirmar as análises anteriores (segundo artigo em El Pais):
 
Harold James (historiador na Universidade de Princeton e no Instituto Europeu de Florença) faz uma reflexão sobre as questões de liderança na crise atual (The crisis of summer) e conclui:
  • In the past, it was war, immense dislocation, and suffering that could weld nations. Is Europe’s current crisis severe and dislocating enough to generate an analogous effect? The more Europe suffers, the more its people will correctly perceive an incrementalist agenda for reform as nothing more than an exercise in futility
Atualização, 25 julho 2012: Charles Wyplosz, "End of game? Don’t bet on it" no blog Vox mais ou menos desmonta a situação da crise na eurozona em moldes algo semelhantes:
  • Moody’s decision to put the German public debt (already above 80% of GDP) on a negative watch is a healthy reminder that the EFSF/ESM route is leading nowhere good.
  • The simple truth has been known all along ... The crisis will not end until the ECB acts as lender in last resort. It can do it on the cheap by either partially guaranteeing all Eurozone public debts or by setting a cap on their interest rates ... . This will bring the speculative phase of the crisis to a temporary end, leaving room for the other required steps.
  • Private bondholders too will be hurt for having purchased what they saw as safe assets. This is a step that all governments want to avoid, which is understandable but futile. The more they wait, the deeper will be the haircuts and the larger the eventual losses.
  • After all, the ECB can rescue the Eurozone, but it cannot repair it – only governments can do 
    that. ... The really good news is that, at long last, the euro has started to depreciate. Since there is no room left for an expansionary monetary policy and since most governments cannot use fiscal policy in a countercyclical way – just letting the automatic multipliers act remains a dream – the only possible boost to stop economic recession from spreading is a rise in exports. A weak euro is in Europe’s interest.
(Itálicos da nossa responsabilidade)

Problemas no "bloco oriental" da EU


A politica de austeridade continua a fazer a vitimas na EU: depois de Portugal, Irlanda, Espanha, Chipre, Grécia, com a Itália a meio caminho, a Eslovaquia também na calha, parece que um caso que tem passado mais despercebido se está a tornar num caso grave, não só economico, mas acima de tudo político: a Roménia.
O que também é grave, é que o que se está a passar na Roménia tem fortes parecenças com as perigosas alterações estruturais do tecido constitucional e político em curso na vizinha Hungria.
Krugman publicou (4 Julho) no seu blog uma carta que é um apelo e um testemunho importante: "Guest Post: Romania Unravels the Rule of Law", por Kim Lane Scheppele, da Universidade de Princeton:
  • Now it’s Romania’s turn to worry those of us who care about constitutionalism, democracy and the rule of law. A political crisis has gripped Romania as its left-leaning prime minister, Victor Ponta, slashes and burns his way through constitutional institutions in an effort to eliminate his political competition.
Estes problemas têm estado em segundo plano de preocupações, numa EU onde as preocupações com a crise da eurozona dominam todas as atenções. Mas podem ser mau augurio para uma deriva não democrática e para uma divergencia politica da zona "oriental" da EU.


(Figura: deficit governamental da Roménia e Hungria, % PIB. Fonte: Eurostat)
(Foto: janela do histórico hotel Gellert, Budapest, em frente ao Danubio, Março 2007)