sábado, 4 de novembro de 2017

Lab, Fab, Apps (II)

Há uma figura na "introdução" do relatório Pascal Lamy, referenciada como figura 1, que merece análise crítica.
A figura não é citada no texto. A legenda da figura diz que é uma "comparação e taxas de crescimento (sic!) de publicações científicas, publicações científicas altamente citadas, investigadores, patentes e valor acrescentado em setores de alta tecnologia, na UE e nos USA".
Esta figura é um monumento de omissões e ideias equívocas. E fica-se a pensar: como é que uma coisa destas aparece num relatório destes?



Em primeiro lugar, as legendas estão incompletas: em nenhum sitio se diz a que cor correspondem os valores da UE e os valores da UE. Adivinhe quem for capaz ou quem quiser. (Suponho que EU seja a cor roxa, os USA a cor laranja).
Em segundo lugar, as taxas de crescimento dizem respeito a que período temporal? Adivinhe quem for capaz ou quem quiser.
Em terceiro lugar, a confusão entre as unidades dos vários eixos é completa. Parece sugerir que o numero absoluto de investigadores (a tempo inteiro) se mede por uma percentagem!. É manifesto que diferentes eixos têm diferentes unidades - mas que não são explicitadas. Adivinhe quem for capaz ou quem quiser.
Dificilmente um aluno de mestrado ou de douramento que apresentasse uma figura assim, numa dissertação ou tese, mereceria a simpatia do júri - e com razão.


A ideia subjacente ao boneco parece ser relacionar a intensidade de I&D, medida pelo número de investigadores (em termos absolutos e relativos), com os outputs do sistema (publicações indexadas e citações, patentes, alta tecnologia) e simultaneamente comparar as performances da UE e dos USA sob esses pontos de vista. A preocupação é que a EU é uma força ("powehouse") de produção de conhecimento através de recursos de I&D, mas é pouco capaz de transformar esse conhecimento em inovação e crescimento: a EU sofre de um "deficit de inovação".
Ora a escolha das métricas usadas na figura nada tem de "científico", ou seja, nem sequer está de acordo com o que sabemos sobre I&D e os seus impactos no desenvolvimento económico e social. Sabemos bem que nenhum desses outputs é, por si só, credível para medir o impacto do sistema de I&D (e dispenso-me aqui de referir literatura sobre isso). Sabemos que as citações bibliográficas são uma medida equívoca, enviesada, que medem acima de tudo o que é trivial e incremental e não o potencialmente diferente, inovador e disruptivo. Sabemos que patentes são uma medida altamente enviesada e pouco credível para comparações multisetoriais e multipolares. Sabemos que a treta dos ditos setores de "alta tecnologia" (inventada pela OCDE) é isso mesmo: uma treta desacreditada como medida dos impactos de I&D, que prejudica países como Portugal em que o papel da industrias ditas tradicionais é fundamental, mas que continuam a assegurar uma grande parte do emprego sustentado e do crescimento económico. E não é a conjunção desses critérios que permite ultrapassar as suas limitações intrínsecas.
Mas é claro que esta figura condensa todo o "framework" tradicional do pensamento "bruxelês", que continua a ignorar os impactos societais de I&D fora das "indústrias" (especialmente as ditas indústrias de "alta tecnologia"), que acha que tudo o que não se reflete em patentes e artigos indexados não existe e que tudo o que não aparece nas estatísticas do Eurostat ou que não se consegue medir com facilidade não tem direito a existir ou a ser reconhecido.
É uma pena que um relatório destes, que tem a ambição de agitar águas e de corrigir uma trajetória, preste uma vassalagem tão acrítica e extemporânea a tais ideias tradicionais, mas fortemente institucionalizadas, que nalguns aspetos são mesmo contraditórias com as recomendações que o relatório depois propõe.

Na realidade, a escolha de outras métricas para os outputs talvez contasse uma história diferente.

(1) A "assimetria" positiva da Europa no mundo é bem traduzida pelos três números que o relatório refere logo na introdução: a Europa representa 24% do PIB global (nas não diz se a preços reais ou em ppp!) e 30% das publicações científicas com apenas 7% da população mundial.

Lab - Fab - App (I)

O comissário Carlos Moedas apresentou o relatório de Pascal Lamy numa sessão plenária do recente Ciencia'17, poucos depois da sua apresentação oficial em Bruxelas.



Trata-se de um relatório com onze recomendações sobre a política de I&D e o seu financiamento pela UE, logo propostas de diretrizes para o próximo programa quadro.
Carlos Moedas apresentou-o com a (boa) qualidade retórica e de enquadramento a que nos habituou, recordando até o papel de um português no grupo geograficamente distribuído de pensadores que marcaram o século XIX e que estruturaram os fundamentos da nossa cultura cientifica e de uma sociedade em que o conhecimento da ciência e a força do pensamento se tornaram centrais para a definição de políticas públicas e o funcionamento da sociedade. A discussão era então aberta (entre eles e com a sociedade), não condicionada por citações melhor ou pior indexadas, pela publicação numa "cidadela fortificada" de publicações "politica e cientificamente corretas": a discussão critica baseava-se na discussão entre humanos e sobre o valor intrínseco das ideias em cima da mesa. Os exemplos que Carlos Moedas referiu até sugerem um grupo de recomendação mútua de pensadores (que sabemos ter existido) - mas isso era, e é, muito diferente do atual sistema de "peer review" que condiciona e limita a imaginação e ousadia dos cientistas e pensadores. E, por consequência, o desenvolvimento da sociedade.

Para além da recomendação de aumentar (duplicar) os fundos I&D na UE, muitas das outras recomendações parecem óbvias para um observador comum. Na realidade, serão mesmo muito óbvias e de simples bom senso dentro do quadro atual do pensamento de políticas públicas para o desenvolvimento económico e social:

- promover ecosistemas colaborativos de investigadores, inovadores, indústrias e governos e dar prioridade a ideias inovadoras com potencial de rápido "scale-up" (através de um (novo) "European Innovation Council")
- modernizar, incentivar e dotar de recursos o sistema de educação e treino para uma Europa criativa e inovadora
- fundamentar as políticas de I&D nos objetivos e impactos propostos, afinar melhor os sistema de avaliação de propostas e aumentar a sua flexibilidade (entenda-se: sair do ciclo fechado das publicações indexadas como a métrica essencial das atividades de R&D)
- mobilizar as redes de investigadores, inovadores e outros atores do sistema societal para grandes missões europeias de inovação e investigação
- racionalizar e simplificar o sistema de financiamento de I&D da UE e promover sinergias entre os vários programas, esquemas e instrumentos comunitários, para ter a ambição de tornar o financiamento da EU na fonte de financiamento de I&D mais atrativa do mundo
- melhorar o alinhamento entre os programas comunitários e os programas nacionais sempre que isso reforce o valor das ambições e missões de I&D na UE e tornar a cooperação internacional uma marca fundamental dos programas comunitários de I&D, incluindo o cofinanciamento (nacional e comunitário) de iniciativas.
- comunicar melhor os resultados e impactos dos projetos comunitários de I&D.
Sejamos razoáveis: tudo isto é razoavelmente trivial e óbvio. Há muito pouco de inovador nestas ideias. Mas isso não lhes retira nem importância nem oportunidade: apenas reconhece que a máquina da politica atual de I&D da UE tem avançado pouco naquilo que deveria ser e que o próximo quadro pode, e deve, ser uma oportunidade de corrigir problemas da tradicional abordagem "bruxelesa".

Das onze recomendações há apenas uma que tem a ver com horizontes novos e diferentes, embora não necessariamente originais: a recomendação #8 fala em mobilizar e envolver os cidadãos, estimulando a sua participação no projeto e nos processos criativos - especialmente na afinação do projeto das tecnologias (uma co-criação social), diria eu, seguindo as ideias de democracia e racionalidade tecnológicas argumentadas por Andrew Feenberg, mas também incluindo o envolvimento societário no "fazer ciência" - ciência para além dos "cientistas" (profissionais) (ver aqui, por exemplo).
Na introdução ao relatório, Pascal Lamy fala em conseguir chegar (e envolver) um público cada vez mais vasto. Numa alusão feliz, mas indireta e provavelmente inconsciente, refere-se ao papel da experiência e da prática no conhecimento (logo na I&D) e fala em considerar a sociedade como um "laboratório vivo de soluções inovadoras para os múltiplos desafios da Europa", em que a participação de todos os atores, privados e públicos, com ou sem fins lucrativos, é precisa e necessária.

quarta-feira, 25 de outubro de 2017

Michael Polanyi: (macro)economia e políticas públicas


Uma conferencia internacional sobre a "fase económica" de Michael Polanyi, à volta do filme do seu filme sobre macroeconomia e do seu livro "Full employment and free trade (1945)", que será transmitida por video streaming aberto:

Trade, Employment, and Public Policy: Michael Polanyi Then and Now

A workshop meeting organized by Anne McCants (MIT) and Eduardo Beira (MIT Portugal Program) and convened in conjunction with the 2017 Polanyi Society Annual Meeting  (Boston).
November 18, 2017 (Saturday), 9 a.m.-3 p.m.
MIT Building E51, Room 095 (http://whereis.mit.edu) Cambridge, MA, USA.
Free access to the local meeting, but previous registration by mail (ebeira@gmail.com) is expected for logistic reasons and lunch planning
Meeting will be broadcasted in real time by video streaming. To link to the session, an web address will be announced here before the event.



sexta-feira, 15 de setembro de 2017

Culture and technology, tradition and innovation


A few years ago I had the opportunity to travel with a group of Amish families in an Amtrack train carriage during something like a full day. It was when travelling from Austin to Tucson. The group of Amish families was travelling together - I understood they were travelling to holiday time in Mexico and really they left in El Paso station.
I was perplexed by the strange mixture of old and new, the old look of dressing and the obvious differences in culture and tradition of their family life. But also by the contrast between Amish tradition of "no use of modern technology" and the obvious use they were doing of modern technology in daily life - not only using modern trains to travel to holiday time abroad, but also using modern processed foods and even portable phones.
Today, The New York Times publishes an interesting piece of journalism about Amish and their "new" technologies use in business and at home: see here.
Amish changing relationships of refusal and acceptance of technologies can be an interesting field of research about technology and culture studies as well as philosophy of technology and diffusion of innovation. An unsual "experiment" ...



quinta-feira, 15 de junho de 2017

Manuel dos Santos Carneiro: memórias de um amigo

12 de janeiro de 2017: na magnifica cozinha da atual Escola Superior Agrária, Ponte de Lima, no final de um dia de visita e de trabalho nas várias escolas do Instituto Politécnico de Viana do Castelo, uma boa conversa à volta de um bom copo de Alvarinho, a falar de projetos, jovens, profissionais, ensino e muitas outras coisas. 

Manuel dos Santos Carneiro faleceu há poucos dias, num trágico desastre de viação, em que também faleceu a sua mulher. Associamo-nos à dor da sua família e amigos. 

Foi um ator e protagonista das tecnologias e sistemas de informação em Portugal, que muito influenciou uma geração de técnicos, de gestores e de empreendedores nacionais, especialmente no Norte de Portugal.
Ao longo da vida, cruzamo-nos muitas vezes. Desde os fins dos anos 70, princípios dos anos 80, nos tempos em que ele, e o seu grupo, pontificava na IBM Porto até muito mais tarde, em que viria a contribuir com o seu testemunho de convidado para as minhas aulas da cadeira de Introduction to General Management no Magallaen MBA na Oporto Business School (2008-2011), intervenções a que os estudantes sempre deram, de forma consistente, uma avaliação elevadíssima, recheada de comentários, como ele tanto gostava.
Os seus interesses na formação de quadros e a sua ambição de "fazer diferente" na formação universitária criaram nos meus últimos anos oportunidades para nos tornarmos a cruzar e criar cumplicidades. Sei que para ele era difícil de compreender a enorme dificuldade da Universidade acolher e aplicar as suas ideias e conheci de perto algumas das suas frustrações. Mas também acompanhei de perto alguns dos seus últimos êxitos na UCP e na UNL.
Foi por isso natural o reencontro cúmplice durante o último ano, em que tive o gosto de o levar a descobrir as potencialidades do ensino superior politécnico e as oportunidades genuínas de ai aplicar muitas das suas ideias. As conversas que teve com alunos e docentes em vários Institutos Politécnicos fascinaram-no e tínhamos ambiciosos planos conjuntos para fazer acontecer "coisas" no âmbito do Programa de Modernização e Valorização do Ensino Politécnico.

Fica aqui o meu tributo a um homem que marcou uma geração. Um notavel networker, coacher, empreendedor compulsivo, amigo da vida, dos amigos e da familia. 
A sua história pessoal é inspiradora para muitos: o jovem matemático com explicações só para o sucesso e muito bem pagas, a conversão à vida empresarial mas com uma elite de colaboradores que lhe assegurassem o sossego profissional, a ousadia de procurar sempre o outro lado da questão e a forma de negociar e contornar o problema, a experiência na IBM americana e o fascínio pelas técnicas de negociação e pelo marketing, a ambição de fazer acontecer através da influência, a ideia (e as dificuldades ...) da SHARE, ...
Como todos, teve a sua dose de sucessos e insucessos. Mas muito mais sucessos do que insucessos. Até porque era exímio na arte de aprender com os insucessos e de os transformar em oportunidades. 
E adorava fazer-se ouvir (e ouvir-se a ele próprio ...).

Desses cruzamentos ao longo da vida e dessas nossas cumplicidades recentes aqui ficam alguns registos em forma de homenagem e tributo pessoal:

1. O último cv pessoal que me enviou para divulgação nas "aventuras" conjuntas em que andamos metidos recentemente nos politécnicos: aqui

2. Dezassete anos atrás, em Janeiro de 2000, eu e o José Carlos Nascimento gravamos uma entrevista com ele, que depois viria a ser incluída no meu livro "Protagonistas das Tecnologias de Informação em Portugal: uma colecção de testemunhos", publicado em 2004. Ver o texto da entrevista no livro aqui. A versão original da transcrição está aqui.


3. Algumas fotografias recentes das nossas andanças nos Politécnicos: aqui


4. Vídeo da intervenção no Forum Politécnico #5, Tecnologias da Informação e Comunicação e competências digitais, Barcelos, 25 de Janeiro de 2017, no Instituto Politécnico do Cávado e Ave. 


4. Vídeo da intervenção no final do GET.TOGETHER #1, Internacionalização e missões, no Instituto Politécnico de Tomar, a 13 de março de 2017: https://youtu.be/VwOmDum61Ww
De manhã, o Manuel tinha visitado a importante operação da IBM / Softinsa no Instituto Politécnico de Tomar, e tinha ficado encantado com o que tinha visto. Esta é a gravação video do seu comentário no fim do dia, numa sessão em que se discutiram questões de inovação pedagógica e curricular na modernização do ensino superior.

sábado, 8 de abril de 2017

"Jovens do campo, filhos das aldeias". Acerca do Requiem de Mozart em Viana do Castelo


1. O Requiem, de Mozart, será uma das obras emblemáticas da "grande música" e que exige tudo: orquestra, coros e solistas. Como sempre na "grande música", um caso de arte que emerge da grande complexidade das interações entre os intérpretes. Alguns classificaram-na como uma das melodias mais pungente e dramática da história da música.
É também uma obra do período pascal. Talvez Mozart a tenha escrito a pensar na sua própria missa de despedida - é uma obra reflete o eterno drama humano da angústia de ser, da vida e da morte, do sofrimento, da emoção e da esperança, do sentido da tragédia humana e do inescrutável divino.

2. A noite de sexta feira anterior ao Domingo de Ramos é uma data simbólica e apropriada para ouvir uma interpretação integral, ao vivo, desta obra emblemática da grande música e do período pascal.
Centenas de intérpretes ao vivo, mais novos e menos jovens, uma comunidade unida pela música à volta do génio de Mozart. Momentos de arte, momentos etéreos de simbolismo partilhados entre os intérpretes e a audiência: a procura por um sentido comum na obra de arte criada por Mozart (e, neste caso, talvez até talvez por mais alguns). 



3. Os números impressionam: mais de 200 elementos do coro, masculino e feminino; uma orquestra com várias dezenas de músicos (cerca de 40); quatro intérpretes do canto clássico. Uma produção exigente, com um fundo visual em geral bem conseguido. Foi a 7 de abril de 2017 na cidade de Viana do Castelo, no espaço polivalente do centro cultural da cidade (desenhado por Sisa Vieira) completamente cheio.
É preciso ter ambição (e competência) para arriscar num espectáculo desta dimensão. Não estará ao alcance de todos. Mas foi um sucesso conseguido pelo coro da Academia de Música de Viana do Castelo e pela orquestra da Escola Profissional de Música de Viana do Castelo - um sucesso que diz muito das dinâmicas territoriais contemporâneas.
É com emoção que se assiste à performance de uma orquestra de jovens músicos locais, alunos do ensino secundário, com 15, 16 ou 17 anos, a interpretar uma obra destas. Como alguém insistia em recordar, "jovens do campo, filhos das aldeias". Também esperança da música portuguesa, acrescentaria eu. Alguns continuarão estudos pós secundários algures pela Europa, para onde já tiveram a ousadia de concorrer.

4. Não se pode ficar indiferente ao papel que as escolas profissionais de musica têm tido, especialmente em territórios mais periféricos (ou menos centrais). A vitalidade da Academia de Música e a qualidade da Escola Profissional não são obra do acaso em Viana do Castelo. 
Como noutros sítios - e estou a recordar-me pelo menos da Esproarte Escola Profissional de Arte de Mirandela - refletem novas massas críticas e interesses na área cultural, assim como lideranças locais capazes de criar novos contextos do mundo da vida e da arte para além dos grandes centros urbanos, iniciativas capazes de integrarem jovens talentos e públicos locais, porventura de faixas sociais de acesso tradicionalmente mais difícil. O que, por sua vez, diz muito das transformações sociais nos territórios das periferias.

5. A ligações entre o ensino secundário profissional e o ensino superior politécnico merece aqui uma nota sobre a sua complementaridade e recorda as oportunidades para promover a cooperação entre ambos ao nível territorial, criando regiões com mais conhecimento, com mais arte, mas acima de tudo regiões onde o futuro profissional de jovens músicos pode ser assegurado com cada vez mais sucesso.
Não será por acaso que na folha informativa do espetáculo (ver aqui) aparecem várias referências a escolas superiores politécnicas, em especial à ESMAE Escola Superior de Música, Artes e Espetáculo do IPP Instituto Politécnico do Porto, na construção das carreiras internacionais de alguns dos principais intérpretes da sessão em Viana do Castelo.
O ensino superior politécnico das artes performativas é um caso exemplar de como os politécnicos podem e conseguem preparar melhor do que ninguém jovens artistas para os mercados profissionais exigentes e competitivos e capazes de sucesso internacional. O ensino da música, clássica ou moderna, e as múltiplas vertentes das artes performativas é uma área por excelência de aprendizagem "fazendo e treinando", aprendendo com a prática e a experiência, misturando abordagens diferentes centradas no sucesso de cada estudante. Aquilo que deve ser o moderno paradigma do ensino superior politécnico.

6. Ouvir uma boa interpretação de um clássico exigente da "grande música" executada por artistas da região (alguns já com carreiras internacionais) num centro cultural moderno, desenhado por um dos grandes arquitetos contemporâneos, e cheio de público interessado, tudo integrado numa produção eficiente e bem sucedida, será sempre de assinalar em qualquer sítio. Quando isso acontece num dos cantos de Portugal, então isso diz-nos muito sobre o Portugal "pós moderno" (*) e justifica uma esperança renovada no futuro das regiões.

(*) Uso aqui o termo com uma óbvia condescendência. Mas recordo um texto que li há uns anos num jornal nacional de referência, escrito por uma socióloga lisboeta conhecida que, depois de uma viagem rápida "à província", escreveu um texto sobre o Minho que ela chamou "pós moderno". Ainda não esqueci o desagrado que a sua leitura me deixou. Nessa precisa altura era no Minho (incluindo Viana do Castelo) que se realizaram durante vários anos iniciativas de animação tecnológica de massas que, mais de uma década depois, ninguém foi capaz de replicar com a mesma dimensão, complexidade e impacto.

terça-feira, 7 de julho de 2015

Grécia (II): as cinzas de Merkel


Não serei o primeiro a dizer que o "não" grego foi uma pesada derrota pessoal de Merkel. Alguns falam mesmo da maior derrota da sua carreira - o que provavelmente é verdade. Prova disso poderá ser a capa do ultimo número da Der Spiegel. A saída da Grécia e um eventual colapso a prazo do euro atirará provavelmente Merkel para o caixote do lixo da História e poderá ser  do fim político de uma lider "acidental", ao fim e ao cabo.
Vale a pena ler a peça do Der Spiegel: aqui, na versão em inglês, "As cinzas de Merkel. Como Merkel perdeu a Grécia e a Europa".
O título fala por si e diz muito da apreensão subliminar que porventura começa a minar as elites alemãs: as dúvidas sobre a clarividência política de Merckel e a sua liderança (ou não liderança). 
  • The Greek crisis required leadership and a plan, but Merkel was unwilling to provide either. Although she likes power, when push comes to shove, she doesn't know what to do with it. And now she faces the wreckage of her European policy. How could things have come to this?
  • So she hid behind the troika, behind the hated technocrats, thereby accelerating the rise of Syriza. Indeed, Tsipras is, to a certain extent, a product of Merkel's vacillating leadership style
  • Merkel wants a Europe of nation-states and not a deeply integrated Europe. She was concerned about Juncker running as the lead conservative candidate in 2014 European elections, worried -- correctly -- that it could result in a reduction of power for European heads of state and government. Furthermore, she doesn't trust the European Parliament because majorities aren't as dependable as they are in the Bundestag back home in Berlin.
  • The chancellor says none of this openly because it would contradict the CDU's founding principle. She can speak like Kohl, but she breaks with what he stood for. Left behind is a confused EU that doesn't know what the most powerful woman on the Continent actually wants.

A parte do artigo sobre o papel da McKinsey e da "matemática" (contabilidade, as folhas de excel) na emergência das politicas de austeridade e sua adoção pelos neo liberais é notavel e mesmo de antologia:
  • In a sense, the International Monetary Fund is the McKinsey of global politics 
Mostra como a tecnocracia assumiu a política e o vazio da política europeia e dos seus líderes (incluindo o patético Barroso), e como o pensamento único da tecnocracia tem destruido o sentido político e social da Europa.
Um texto notável de jornalismo e análise política. Escrito e publicado pelo mais influente meio de comunicalão alemão, note-se. 
Interessante as opiniões atribuidas ao ministro alemão das finanças ... 

Grécia (I): a incomensurabilidade



1. Gráfico muito elucidativo publicado pelo Royal Bank of Scotland: apesar de tudo os gregos reduziram substancialmente a despesa pública, muito mais do que os outros países - e com isso precipitaram uma colossal recessão interna, resultado da receita de austeridade da UE e IMF. Vale a pena recordar aqui o gráfico incluido em post anterior (aqui), do pib per capita ppp (preços constantes).

2. O grande "Não" dos gregos deixou muita gente apoplética, e não só os políticos europeus. Na SIC Notícias, o comentador de serviço, José Gomes Ferreira, não conseguia disfarçar uma incomodidade colossal. Em filosofia, chama-se a isso incomensurabilidade: claro que para ele é inconcebível o que os gregos fizeram - são uns burros inconscientes que não percebem nada de economia, pura e dura. Wittgenstein diria que são dois "language games" completamente diferentes. Incomensuraveis. 

3. Simon Wren-Lewis, professor de economia na Universidade de Oxford, mantem um dos blogs (mainly macro) mais influentes sobre macroeconomia, com enfase na europa. Cito de um dos post mais recentes, sobre os ideólogos da eurozona:
  • One of the charges frequently made against opponents of austerity in the Eurozone is that we are really seeking the failure of the whole Euro project. The opposite is nearer the truth. The problem for the Euro project is that it has become captured by an economic ideology, and austerity is that ideology’s principle weapon. A self-confident and mature Eurozone would be able to tolerate diversity, rather than trying to crush any dissent. A Eurozone captured by an ideology will insist there is but one path, and that the imperative of austerity is too important to accommodate democratic wishes. Pursuing that ideology has brought the Eurozone to the brink, where it is prepared to force out one of its uncooperative members. Critics of austerity are not trying to destroy to Eurozone, but save it from the grip of this self-destructive ideology.

Um dos pensamentos mais perturbadores sobre a crise na UE é precisamente a transformação da política em ideologia, com o argumento da inevitabilidade da solução da tecnocracia, com base na sua qualidade "científica" e técnica.
Parece estarmos a voltar onde já estivemos, e com resultados dramáticos. O comunismo argumentava que era uma "teoria científica" que promovia a tecnologia por "métodos científicos" e que organizava a sociedade de acordo com os mesmos métodos. O nazismo praticava a segregação racial e a eugenia seletiva com base em argumentos do mesmo tipo, e tentava mesmo proclamar a sua vocação imperial numa base (pseudo) cultural e filosófica. (Heidegger caíu estrondosamente nessas esparrela, que alimentou). Por isso ver renascer este tipo de pensamento, ainda por cima centrado em terras germanicas (mas não só) é muito perturbador.

4. Ontem apareceu uma entrevista muito interessante do francês Thomas Picketty (aqui), ilustrada com uma fotografia de 1954, precisamente com o ministro das finanças grego a assinar o perdão de METADE da divida alemã (foto reproduzida abaixo). Mas a tese de Picketty é ainda mais interessante:

  • Germany is the country that has never repaid its debts. It has no standing to lecture other nations.


sexta-feira, 26 de junho de 2015

Grécia e Portugal: o amuo e as queix(inh)as do PM

No Financial Times (aqui):
  • Mr Tsipras reiterated his belief that the creditors’ plan would stifle growth and ignores the democratic mandate he received in January’s elections. ...
  • But Mr Tsipras received little support in the room, officials said. Particularly tough were the prime ministers of other countries who have gone through their own bailout programmes: Ireland, Portugal and Spain. ...
  • Pedro Passos Coelho, the Portuguese prime minister, was particularly pointed, officials said, noting that his country’s bailout programme was never debated at an EU summit and chastising Mr Tsipras for repeatedly insisting it be discussed among heads of state. “It cannot be done in a way different from every other country,” Mr Passos Coelho said.

A atitude de Passos Coelho é reveladora, mas é também um elogio e um cumprimento público à ousadia política dos gregos: o homem está amuado e preocupado porque os gregos conseguiram levar a questão a uma cimeira politica da UE, coisa que Portugal nunca ousou ou conseguiu. Este amuo mostra muita coisa. Aliás complementado pelas queixas (por exemplo, aqui no DN) que fez sobre a flexibilidade adicional que a Grecia já conseguiu da UE: implicitamente está a reconhecer que podia ter conseguido melhores condições para Portugal e não o fez, ou porque não quiz ou porque não foi capaz. 
Claro que ele conhece perfeitamente o carater recessivo e destruidor das medidas de austeridade propostas, especialmente numa situação como a grega. Mas prefere tentar safar a sua própria pele politica: como é que os gregos se atrevem a protestar e a dizer não?
Seja qual for o desfecho desta crise, uma coisa é certa: a Europa mudou. Provavelmente para pior. Infelizmente - e certamente sem necessidade. 
Recorde-se a realidade dos últimos anos. O gráfico seguinte mostra a evolução do PIB per capita at PPP (purchasing power parity, ou seja, a preços constantes). O gráfico foi recentemente publicado num artigo de Martin Wolf no FT (aqui). Este gráfico conta a história toda, nua e fria: nós perdemos cerca de 10% e a recuperação do ultimo ano nada altera de essencial. E veja-se o tombo colossal da Grécia: mais de 25%!!


Um grito de revolta: Jurgen Habermas, a Europa e a Grécia


Jurgen Habermas é um dos filósofos europeus contemporâneos mais importante. Professor na Universidade de Frankfurt, tem refletido com profundidade sobre o significado do projeto da União Europeia, que tem defendido. Por isso o seu artigo de opinião publicado no diário francês Le Monde é tão importante - por ser escrito por uma das mentes mais esclarecidas do pensamento europeu, um defensor e teorizador da transnacionalização da democracia e da constitucionalização da lei internacional, e um democrata alemão.
Este seu grito de revolta sobre o escandalo da política europeia com a Grécia faz eco do que pensam muitos europeus das gerações fundadoras da Europa. Nos comentários que tenho visto e ouvido nos programas de comentário televisivo, é patente o desalento de gente como Pacheco Pereira, Ferreira Leite ou Bagão Felix perante o descalabro das elites e líderes políticos da União. Eu partilho desse desalento e dessa revolta.
Tomei por isso a liberdade de traduzir o texto de Hebermas para português, a partir da versão francesa.
Num momento em que me sinto inquieto pelo futuro da Europa e do projeto social e solidário que representava e em que acreditei.



A escandalosa política grega da Europa
Jurgen Habermas


Traduzido do alemão para francês por Olivier Mannoni
Traduzido do francês para português por Eduardo Beira
Publicado em Le Monde, 24 junho 2015 (aqui), disponível na integra aqui

Os resultados das eleições na Grécia exprimem a escolha de uma nação cuja grande maioria se colocou numa posição defensiva face a uma miséria social tão humilhante como avassaladora, provocada por uma política de austeridade imposta ao país pelo exterior. O voto propriamente dito não permite qualquer discussão: a população rejeita a continuação de uma política de que sofreu o falhanço brutal na sua própria carne. Seguro desta legitimação democrática, o governo grego tenta provocar uma mudança de política na eurozona. Ao fazê-lo, colidiu com os representantes de dezoito outros governos, que justificam a sua recusa referindo-se friamente ao seu próprio mandato democrático.
Recordamo-nos desses primeiros encontros em que os noviços arrogantes, levados pela exaltação do seu triunfo, entregavam-se a um torneio ridículo com as gentes bem instaladas, que reagiam tanto com as mimicas paternalistas de bom tom como com uma espécie de desdém repetitivo: cada uma das duas partes tratava de gozar a legitimidade dada pelo seu “povo” respetivo, e repetiam essa antífona como papagaios.
Foi ao descobrir até que ponto a reflexão que faziam na altura, e que se baseava no quadro do Estado nação, era de um cómico involuntário, que toda a opinião pública europeia  compreendeu aquilo que realmente faltava: uma perspetiva que permitisse a formação de uma vontade política comum dos cidadãos, que fosse capaz de pôr, no centro da Europa, objetivos políticos que tivessem consequências reais. Mas o véu que encobria este déficit institucional não está ainda realmente rasgado.


Um novo recomeço
A eleição grega introduziu grãos de areia nos mecanismos de Bruxelas: neste caso foram os próprios cidadãos que decidiram da necessidade urgente de propor uma política europeia alternativa. É verdade que noutros lugares são os representantes dos governos que tomam este tipo de decisões entre si, segundo os métodos tecnocráticos, e evitam incomodar as suas próprias opiniões públicas nacionais com assuntos que as possam inquietar.
Se as negociações iniciadas em Bruxelas com vista a um acordo não tiverem sucesso, é sem dúvida acima de tudo porque as duas partes não atribuem a esterilidade dos debates ao vício de construção nos procedimentos e nas instituições, mas sim ao mau comportamento dos outros parceiros. É verdade que a questão de fundo é a obstinação com que se agarram e uma política de austeridade que não só merece a crítica generalizada dos meios científicos internacionais como teve consequências bárbaras na Grécia, onde se mostrou um fracasso manifesto.
No conflito de base está o facto de uma parte pretender provocar uma mudança desta política enquanto que a outra recusa obstinadamente envolver-se em qualquer espécie de negociação politica, o que revela uma assimetria profunda.
É preciso compreender bem aquilo que esta recusa tem de chocante, e mesmo de escandaloso. O compromisso falha, mas não por causa de alguns milhares de milhões de euros a mais ou a menos, nem mesmo por causa desta ou daquela cláusula do caderno de encargos, mas unicamente por causa de uma reivindicação: os gregos pretendem que se permita que a sua economia e a sua população explorada por élites corruptas possa recomeçar de novo com uma redução do seu passivo - ou com uma medida equivalente, por exemplo com uma moratória sobre a dívida, cuja duração dependeria do crescimento. Em vez disso, os credores continuam a reclamar o reconhecimento de dívidas que a economia grega jamais permitirá pagar.


A reivindicação duma redução da divida não é suficiente
Note-se bem ninguém contesta que uma redução parcial da dívida é inevitável, a curto ou longo prazo. Os credores continuam, com total conhecimento de causa, a reclamar o reconhecimento formal de um passivo cujo peso é impossível de aguentar. Ainda há pouco tempo, persistiam mesmo em defender a reivindicação literalmente fantasmagórica de um excedente primário de mais de 4%. É verdade que baixou depois para o limite de 1%, que continua irrealista; mas até aqui é impossível encontrar um acordo - de que depende o destino da União europeia - porque os credores exigem que se mantenha uma ficção.
É claro que os “países credores” têm razões políticas para se agarrarem a esta ficção que permite adiar, a curto prazo, uma decisão desagradável. Temem, por exemplo, um efeito de dominó noutros “países devedores”; e Angela Merkel não está segura da sua própria maioria no Bundestag. Mas quando se dirige uma politica errada, é-se forçado a fazer a sua revisão, de uma maneira ou outra, quando damos conta que ela é contra prudecente.  
Por outro lado não se pode continuar a culpar apenas um das duas partes pelo insucesso. Não sei dizer se a tática do governo grego se baseia sobre uma estratégia bem refletida nem julgar o que resulta, na sua atitude, de condicionantes políticas, ou da inexperiência ou incompetência do pessoal responsável pelos dossiers. Não tenho informação suficiente sobre as práticas usuais ou as estruturas sociais que se opõem às reformas possíveis.
Em qualquer caso, o que é manifesto é que os gregos não construíram um Estado que funcione. Mas tais circunstâncias difíceis não podem explicar porque é que o governo grego complica singularmente o trabalho daqueles que tentam, mesmo entre os seus simpatizantes, discernir uma linha no seu comportamento errático. Não se vê nenhuma tentativa racional para formar coligações; interrogamo-nos se os nacionalistas de esquerda não se agarram, apesar de tudo, a uma representação algo etnocêntrica de solidariedade, se apenas querem continuar na zona euro por motivos resultantes de simples esperteza - ou se a sua perspetiva ultrapassa mesmo o quadro do Estado nação.
A revindicação de um perdão parcial das dívidas, que constitui a base contínua das suas negociações, em qualquer caso não é suficiente para que a outra parte tenha pelo menos confiança no facto do novo governo grego não ser como os precedentes, mas que irá agir com mais energia e de maneira mais responsável que os governos clientelistas que substituiu.


Mistura tóxica
Alexis Tsipras e o seu partido Syriza podiam ter desenvolvido um programa de reformas governamentais de esquerda e “ridicularisar” assim os seus parceiros de negociação em Bruxelas e Berlim. Amartya Sen comparou a política de austeridade imposta pelo governo alemão a um medicamento contendo uma mistura tóxica de antibióticos e de remédio para os ratos. O governo de esquerda teve perfeitamente a possibilidade de iniciar uma decomposição keynesiana da mistura de Merckel, no sentido em que isso era entendido pelo prémio Nobel da economia, e de rejeitar sistematicamente todas as exigências neoliberais; mas ao mesmo tempo precisava de tornar credível a intenção de se lançar numa melhor repartição dos encargos, de combater a corrupção e a fraude fiscal, etc.   
Em vez disso, acantonou-se no seu papel de moralizador - um jogo de culpas. Tendo em conta as circunstâncias, isso permitiu ao governo alemão afastar, com um simples gesto de enfado, e com a força da Nova Alemanha, a queixa justificada da Grécia sobre o comportamento astucioso, mas indigno, adotado pelo governo Kohl no princípio dos anos 90.
O fraco desempenho do governo grego não altera o escândalo: os homens políticos de Bruxelas e Berlim recusam-se a endossar o seu papel de políticos quando se encontram com os seus colegas atenienses. Mantêm as aparências, mas quando falam, falam exclusivamente no seu papel económico, no seu papel de credores. Faz sentido que se transformem assim em zombies: trata-se de dar a aparência de um processo político a um procedimento tardio de declaração de insolvabilidade de um Estado, susceptível de ser objeto de de um procedimento de direito privado nos tribunais. Porque tendo feito isso, será mais fácil negar uma responsabilidade politica. A imprensa diverte-se com o facto de se ter dado outro nome à “troika” - e, na realidade, trata-se de uma espécie de golpe de magia.
Mas o que isso exprime é o desejo legítimo de ver, apesar de tudo, surgir a face dos homens políticos por trás das máscaras dos financeiros. Porque este é o único papel em que podem vir a ter que prestar contas por um desastre que se traduz por uma grande numero de vidas estragadas, miséria social e desespero.


Intransigência
Para conduzir as suas duvidosas operações de socorro, Angela Merkel fez entrar o FMI no barco. Este organismo é competente para as disfunções do sistema financeiro internacional; enquanto terapeuta, assegura a estabilidade e atua no interesse geral dos investidores, particularmente dos investidores institucionais. Enquanto membro da “troika”, as instituições europeias fizeram causa comum com esse ator, embora os políticos, na função desse título, se desdobrem no papel de agentes a operar no respeito estrito pelas regras e a quem não é possível pedir contas.
Esta dissolução da política na conformidade com o mercado talvez se possa explicar pela insolência com que os representantes do governo alemão, que são, sem excepção, pessoas de alta moralidade, negam a sua corresponsabilidade política nas consequências sociais devastadoras que aceitaram enquanto lideres de opinião no seio do conselho europeu, quando impuseram o programa das economias neoliberais.
O escândalo no escândalo é a intransigência com que o governo alemão assume o seu papel de líder. A Alemanha deve a impulsão que lhe permitiu a ascensão económica, de que vive ainda hoje em dia, à generosidade das nações credoras que, aquando do acordo de Londres, em 1954, riscaram com um traço da caneta cerca de metade das suas dívidas.
Dito isto, o essencial não é o embaraço moral, mas o núcleo político: as elites políticas da Europa não têm mais o direito de se esconderam por trás dos seus eleitores e de se esquivarem às alternativas perante as quais somos postos por uma comunidade monetária politicamente inacabada. São os cidadãos, não os banqueiros, que devem ter a última palavra sobre as questões relativas ao destino europeu.
O adormecimento pós democrático da opinião pública também se deve ao facto da imprensa ter caído num jornalismo de enquadramento que avança de mão dada com a classe política e que desconfia do bem estar dos seus clientes.

terça-feira, 5 de agosto de 2014

Onze questões sobre o novo e o velho BES

1. E se Miguel Sousa Tavares tiver razão e tiver sido feito um empolamento artificial dos prejuizos do BES, por razões políticas e para que a nova administração venha depois a poder fazer flores, à custa dos antigos acionistas? E se o empolamento for da ordem dos mil milhões de euros, ou mais? Recorde-se que nem todos os acionistas do BES eram membros da familia Espirito Santo. Nem sequer a maioria ... E muitos eram pequenos acionistas. E não sei se todos os membros da familia podem ser tratados por igual nestas circunstancias.
2. Como se compreende que altos dirigentes do BES, alguns dos quais responsáveis por estarem diretamente envolvidos ao longo de muitos anos na venda camuflada de produtos financeiros do GES ao balcões do BES, apareçam agora na administração do banco novo?
3. Sem culpa formada, sem tribunais, parece que os anteriores dirigentes de empresas do BES, assim como revisores de contas, assim como os seus familiares diretos, ficam com as suas contas no BES "confiscadas" - algo que, quanto eu me recorde, nem sequer nas nacionalizações gonçalvistas da banca aconteceu. Quanto tenha visto anunciado, essas contas ficam bloqueadas até á dissolução do velho BES, depois dos anos (porventura décadas), como garantia contra eventuais ilicitos em que porventura tenham estado envolvidos. Note-se que o universo das pessoas afetadas parece ser muito maior do que a administração do antigo BES e respetivos órgãos de fiscalização.
4. Será que antigos dirigentes do BES que agora aparecem como dirigentes do novo banco também ficaram com as suas contas no BES atascadas (ou confiscadas) no banco mau, assim como os seus familiares diretos?
5. Afinal ninguém disse nada, mas parece que houve realmente um princípio de "corrida ao banco", na sexta feira passada e que foram muitos os depositantes a levantar ou transferir os seus ativos. Parece que se está a tentar esconder isso, mas parece que nos aproximamos perigosamente de um meltdown bancário na sexta feira passada, tal como tínhamos antecipados no último post, escrito precisamente durante a sexta feira passada (ver BES: um colapso e um desastre "colossais").
6. Sabe-se que a PT levantou á ultima da hora muitos milhões de euros do BES. Obra do espírito santo? Milagres destes são suspeitos ...
7. Os atuais gestores do novo banco são gestores públicos ou privados? O dinheiro é público, e sem o dinheiro público a operação teria sido impossível. Se são gestores de coisas públicas, porque não estão sujeitos ao ordenamento jurídico - e vencimentos - dos gestores públicos? Na realidade, o governo não teve outra solução senão nacionalizar o banco e usar dinheiros públicos para salvar os mercados. Uma vez mais, não me choca no plano ideológico - mas é a contradição total com a ideologia neoliberal do mercado privado.
8. Não é preciso ser bruxo para se anteciparem longas, longuíssimas, batalhas judiciais à volta quer do antigo BES como do novo banco, tal parece ser a inconsistência da construção jurídica da operação. Em consequência das incertezas que essa litigância vai criar, a venda do novo banco poderá conhecer grandes atrasos que por sua vez farão desmoronar a tal mentira de que isto não tem qualquer custo para os contribuintes ou para o Estado.
9. Depois disto, o tal fundo de salvação dos bancos fica sem dinheiro e ainda por cima a dever uma "colossal pipa de massa" ao Estado. E se acontecer algum precalço no Banif, ou noutro banco?
10.  E a Tranquilidade? É credível que, tal como BES, não existam aí muitas operações de engenharia financeira desenhada para financiar subrepticiamente os buracos das contas do universo empresarial do GES?
11. No final de sexta feira o mercado ainda avaliava o BES em cerca de 1.5 milhões de euros. A operação feita destruiu de forma quase completa e irreversível esse valor dos acionistas. Mais ano, menos ano, o Estado vai ter que acabar por indemnizar quem foi agora espoliado. Como os casos das anteriores nacionalizações mostraram. Não há Estado de direito que aguenta tropelias destas, mesmo que camufladas. Paulo Portas a defender publicamente que não havia outra solução senão nacionalizar o banco e espoliar os acionistas?

PS. Notável intervenção de um comentador (Marco Silva) no noticiário de hoje á noite na RTP2. Vale a penas ouvir.

sábado, 2 de agosto de 2014

BES: um colapso e um desastre "colossais"

1. Quando Vitor Bento e os outros novos dirigentes entraram para a gestão do BES como administradores cooptados (logo não eleitos pelos acionistas em Assembleia Geral), pela mão e inspiração do regulador, as ações do BES estavam cotadas a cerca de 0.45 euros. Quando escrevo isto, as acções do BES estão a transaccionar próximo dos 0.1 euros. Uma quebra brutal de mais de 75% em menos de um mês de gestão. Um colapso "colossal" e espantoso, em especial quando comparado com as evoluções de outros bancos cotados no mesmo período.


Pode-se argumentar que entretanto "apareceram" milhares de milhões de euros de dívida desconhecida e que isso justifica o desastre. Em parte é verdade - mas porventura menos do se pretende fazer crer. O mercado de capitais vive de expectativas futuras, e uma parte do risco do aparecimento desses buracos "colossais" já estava a ser antecipado pelo mercado.
O que está acontecer significa também que os mercados, uma vez mais, não dão cinco tostões nem pela capacidade da gestão de Vitor Bento & Cª para repor valor ao banco, nem pela capacidade do Banco de Portugal para rapidamente limpar a casa.
O resultado parece ser ter que meter dinheiros públicos no BES, porventura com uma cosmética contorcida que permita poder dizer que afinal não é uma privatização. Não me repugna uma nacionalização nas condições em que estamos. Mas que seja um governo de neo liberais, adversários jurados da intervenção do Estado na sociedade, que agora o tenha que fazer, ao revés de tudo o que tinha antes afirmado, diz bem da trapalhada e da falta de coerência deste governo.

2. O WSJ (aqui) diz-nos o que pensam os mercados, mesmo ainda antes do último colapso bolsista do BES:
  • "After saying for a while now that BES has sufficient capital, yesterday the Bank of Portugal said that a capital increase was necessary," Deutsche Bank strategist Jim Reid said.
  • Daragh Quinn, an analyst at Nomura International PLC who still has a buy rating on the bank, wrote in a note to clients that while the losses in BES aren't unprecedented "given the experience of some banks during the recent financial crisis, the manner in which they have been incurred seems unique. Until the details of the capital plan are clear, we don't have enough visibility on the investment case," he added in a note to clients earlier Thursday.
  • The cost of insuring BES debt against default also jumped. It now costs $590,000 a year to insure $10 million of BES debt for five years, $166,000 more than Wednesday's close, according to Markit.

3. Os casos de clientes BES que não estão a receber pontualmente os juros, ou mesmo o capital, devido por aplicações em produtos vendidos nos balcões do GES Alguns casos divulgados pelos media são mesmo muito preocupantes.
Afinal parece que as aplicações dos clientes do BES podem não estar seguras - mesmo tendo o banco criado provisões que teoricamente garantiam a sua satisfação, e depois de toda a gente, do Banco de Portugal ao Presidente da República, o terem andado a prometer. Não me admiraria muito se isto despoletasse uma corrida aos depósitos - um cenário que, a concretizar-se, seria alarmante e de consequências sistémicas.
As desculpas esfarrapadas da administração do Banco, atirando as responsabilidades para o Banco de Portugal, parecem patéticas. E levantam questões éticas gritantes sobre o comportamento empresarial do Banco e da sua administração. Como é que isso se conjuga com as tais preocupações éticas das atividades empresariais, que Vitor Bento alardeava defender acerrimamente? Claro que não se conjuga.

sábado, 19 de julho de 2014

Ainda mais sobre o BES




1. Em meados dos anos 90 conheci de perto o caso de um administrador de uma empresa importante cotada no mercado de capital. Num daqueles almoços de cativação de clientes empresariais relevantes, um quadro de topo do BES conseguiu convencer também esse administrador a fazer uma aplicação pessoal, da ordem de meio milhão de euros, num serviço de gestão discricionária.
Recordo ainda a cara de horror desse administrador quando passados uns tempos descobriu que tinha perdido cerca de 20% do capital investido e que lhe tinham aplicado o seu dinheiro em produtos financeiros ... do próprio GES / BES. Não é por acaso que me tenho lembrado deste caso nas ultimas semanas.

2. Há menos de três meses, o BES publicou e distribuiu o numero 37 do valorBES, a newsletter dos acionistas do BES, relativo ao mês de Maio de 2014, onde se faz uma análise ao exercício de 2013. O editorial é assinado por Ricardo Salgado, acompanhado da sua fotografia e assinatura. O tom laudatório do texto segue a retórica habitual desta literatura, mas algumas passagens soam hoje a uma profunda hipocrisia, escassas dezenas de dias depois de terem sido escritas. Por exemplo:

  • A boa performance do Banco num índice de referencia mundial como é o Dow Jones Sustainability Index comprova que a estratégia de sustentabilidade é um elemento fundamental do modelo de negócio e da missão do Banco, refletindo uma gestão equilibrada e pautada por valores de solidez, rigor e transparência (itálicos da minha responsabilidade).

Noutra passagem fala da "rigorosa disciplina financeira que caracteriza o banco", da "gestão prudente do risco" e reclama com orguho que "em 2013, o BES integrou a lista das 100 empresas mais sustentáveis do mundo".
Se nos recordarmos que os problemas do BES têm origem no GES, cuja administração era largamente liderada pelas mesmas pessoas da família, e que as contas do GES terão vindo a ser friamente falsificadas durante anos (porventura de forma sofisticada e durante mais anos do que se diz), podemos perguntar agora o que é que pode também estar escondido nas contas de várias empresas emblemáticas do universo do GES (inclusivé companhias do sistema financeiro, como companhias de seguros relevantes em Portugal).
O BES colocava aos seus balcões dívida (papel comercial) do GES, cuja administração (só esses???) conheciam perfeitamente o risco associado a esses produtos devido ás contas manipuladas e aldabradas do universo GES, também por eles administrado. Aliás é de perguntar o que é que realmente sabiam sobre isso os quadros de topo do BES e do GES, inclusivé os que em simultaneo têm feito carreira política - por exemplo, o que sabia sobre isso Miguel Frasquilho, deputado, economista de serviço no PSD e lider da AICEP nomeado por este governo? Mas haverá outros ...

3. Sandro Mendonça (do ISCTE) escreveu no Expresso online um texto notável e corajoso, que se recomenda (aqui). No programa Expresso da Meia Noite (na SIC Noticias), Sandro Mendonça teve a coragem de dizer o que poucos têm tido coragem para dizer em público: que Vitor Bento, CEO do BES, continua com vínculo ao Banco de Portugal, o que coloca questões sobre as relações entre regulado e regulador. Parece óbvio que Vitor Bento simplesmente não quer correr o risco de perder esse vinculo, não vá o diabo tece-las. (Mendonça recordou que Vitor Bento recebeu durante anos prémios de desempenho no Banco de Portugal quando nem sequer estava ao serviço do Banco). Questões de ética ...

4. Entretanto o WSJ publicou ontem um artigo (aqui) que complementa bem o texto referido de Sandro Mendonça, e que faz perguntas pertinentes:
  • Troubles at Espírito Santo International SA have rocked markets in southern Europe in recent days, but there were signs as early as 2012 that the Portuguese conglomerate was struggling, raising questions about why regulators didn't intervene earlier.
  • The report included an opinion from auditor KPMG, dated September 2012, which warned that as of June 2012, the €666 million ($900 million) fund had invested about 87% of its value in commercial paper of Espírito Santo entities. The fund was marketed to clients of Banco Espírito Santo. The auditor also warned that given the debt was short term and there wasn't a market price available for it, the value of the investment was calculated based on the issuer's judgment. KPMG issued the same opinion in a report for the year ended December 2012.
  • The Wall Street Journal questioned Bank of Portugal in November on whether clients of Banco Espírito Santo who invested in the fund, called ES Liquidez, were exposed to too much risk, and whether there was a conflict of interest in having a bank market a fund so exposed to debt of the bank's main holding company. A spokesman for the central bank said then the issues weren't "of responsibility of Bank of Portugal," adding the questions should be posed to the market's regulator. He, however, said the central bank was monitoring connections between banks and affiliates closely, and there were rules in place imposing restrictions on loans from banks to those affiliates.
  • The International Monetary Fund, the European Union and the European Central Bank, lenders under Portugal's €78 billion, three-year bailout program that ended in May, also didn't raise any flags about possible problems with Espírito Santo International or the bank.

quarta-feira, 16 de julho de 2014

Ainda o BES

1. Que há um buraco nas contas do GES é um facto - recordo o post anterior (aqui). O que ainda não está claro é como é que foi criado, nem qual o seu valor. Mas sabe-se que é um buraco enorme. Um amigo meu sugere que é o resultado de anos a fio de sofisticadas contabilidades criativas para esconder grandes perdas durante muito tempo - muitos anos, e não apenas os últimos anos.

2. Esse meu amigo tem ainda uma teoria, um modelo tentativo para explicar a estranha crise no GES e no BES. O BES angariava fundos de várias origens. Emprestava dinheiro ao BESA em Angola, que estranhamente perdeu o rasto a empréstimos no valor milhares de milhões de euros, algo absolutamente insólito, mesmo que cobertos por garantias do governo angolano. O meu amigo sugere que esses fundos podem ter ido parar ... aos mesmos Espirito Santo ou GES, deixando chorudas comissões pelo caminho, com o objetivo de ajudar a tapar os buracos no Luxemburgo e em Portugal. E o meu amigo recorda a história dos dinheiros que Ricardo Salgado se "esqueceu" de declarar ao fisco, que agora se dizem terem vindo Angola numa teia de comissões e empreiteiros. Mas quero acreditar que esse meu amigo é um exagerado com imaginação a mais.


3. Ontem a nova equipe de gestão entrou ao serviço. Resposta do mercado: desvalorização das acções do BES em mais de 7%. Hoje a nova administração falou (e pouco ou nada disse: paleio vago e óbvio de recuperar a confiança perdida e de "pôr fim à especulação", em vez de clarificar). Resposta do mercado: uma quebra adicional de 15%. Em dois dias da nova gestão, que era dita precisar de entrar urgentemente ao serviço para salvar o BES, o mercado respondeu com mais de 20% de perdas na capitalização bolsista do BES. Elucidativo.

4. O que essa resposta significa é que o mercado não acredita numa gestão de comissários políticos sem experiência de bancos em mercados concorrenciais, nem que as facilitações politicas que pressupõem sejam suficientes para tapar os buracos no BES.

5. O governador do Banco de Portugal vem outra vez dizer que o BES é sólido e que até há quem queira investir no Banco. Uma coisa começa a ser clara: a supervisão do Banco de Portugal falhou completamente em prevenir mais uma crise bancária e já não tem credibilidade para fazer estes anúncios. Afinal de contas estava tudo tão sólido que teve á pressa de coadoptar uma nova administração, tudo sob a pressão da urgência e sem respeito formal pelos acionistas, sem sequer aguardar pela assembleia geral num ambiente de normalidade - uma contradição completa. Já vimos a credibilidade que o mercado deu a esses anúncios.

Atualização (17 julho): excelente artigo de opinião por Sandro Mendonça no Expresso online, (desBESificar o país, aqui).